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Literatura

Salvar o fogo: Novo livro de Itamar Vieira Junior constrói fascinante capítulo ligado às questões da terra no Brasil

Itamar Vieira Jr. Foto: Renato Parada.

Novo romance do soteropolitano, “Salvar o Fogo”, chega às livrarias após êxito em pré-venda com 37 mil cópias vendidas. 

Por Gabriel Pinheiro | Colunista de Literatura

É na Tapera do Paraguaçu, uma comunidade tradicional de origens afro-indígenas, que vivem Luzia, o irmão Moisés e o pai Mundinho. Sob o jugo da Igreja católica, que mantém ali um mosteiro construído há séculos, a vida segue um curso duro, marcado pela luta e pela defesa ferrenha do curto pedaço de chão que fornece a matéria para a sobrevivência. Se a presença do poder religioso permite ao menino, Moisés, a possibilidade do estudo que os pais e os irmãos não tiveram, ela é também a chave para dores que atravessam séculos, do passado ao mais imediato presente, marcando a ferro e fogo esta família – e mais, toda uma comunidade e, porque não, um país que parece ainda sentir arder as feridas da colonização. “Salvar o fogo” é o novo romance de Itamar Vieira Junior, lançado pela Todavia Livros.

Luzia é lavadeira, prestando serviços para os religiosos residentes no mosteiro. Assim, ela encontra no trabalho uma possibilidade de defesa contra uma comunidade que vê nela um suposto poder sobrenatural, responsável por um horror não nomeado. Sua vida na Tapera, desde a infância, é marcada pela estigmatização, pelo medo e pela ameaça. Itamar constrói na relação da comunidade no entorno de Luzia uma metáfora pungente para o Brasil contemporâneo, onde o medo constrói inimigos comuns, vítimas de turbas furiosas à espera da oportunidade para o linchamento. Basta um passo em falso.

Capa de Salvar o Fogo. Editora Todavia.

Religião e terra

Na proximidade com o mosteiro, a mulher busca, então, um sentido religioso para a sua vida e para a de Moisés, o irmão caçula, o temporão de uma família de muitos filhos espalhados por diferentes lugares. O jovem passa a receber uma educação tradicional, encontrando nos livros um refúgio inesperado frente à bruteza da vida familiar. Mas um trauma marcará para sempre o menino, fazendo com que muitos laços sejam, por fim, rompidos: com a comunidade, com a religião e, principalmente, com as próprias origens.

Intercalando passado e presente de maneira brilhante, Itamar Vieira Junior tece uma história que, ao dizer de uma comunidade específica, diz de um projeto de nação forjado desde a fundação deste país que hoje chamamos Brasil. “Salvar o fogo” parece trazer em suas páginas muitos gritos entalados na garganta: do grito do primeiro indígena aqui colonizado pelo catolicismo ao da última vítima dos conflitos no campo que acompanhamos no noticiário. Todo um processo longo e interminável de disputa pela terra que parece pintar de tons terrosos – do barro vermelho onde germinam tanto sementes quanto sonhos – as páginas do romance.

Itamar Vieira Jr. Foto: Adenor Gondim.

Múltiplos olhares

Polifônico, o romance mergulha, assim, em diferentes vozes e pontos de vista. Neste mergulho, Itamar desenha, mais uma vez, um grupo de personagens inesquecíveis. Se em “Torto arado” tivemos Belonisia, Bibiana e Maria Cabocla, aqui temos Luzia, Moisés e Mariinha – uma irmã que há muito partira da Tapera em busca de melhores condições de vida que Luzia, enfim, reencontra após décadas de ausência. “Salvar o fogo” é, assim, uma nova peça, cuidadosamente lapidada, na construção deste universo ligado às questões da terra, onde o autor se interessa por aqueles que, ao longo da história – repetidamente contada pelos vencedores – não ganharam voz. “Me interessa dar protagonismo a personagens que fizeram parte de minha própria história, escrever aquilo que ainda não foi escrito: a história daqueles que não puderam escrever as suas histórias”, declarou o escritor na coletiva de imprensa de lançamento deste novo romance. 

Assim, Luzia sentia nas próprias mãos que não havia barrela que parecia ser o suficiente para alvejar as roupas e os lençóis brancos dos padres do mosteiro. Isso porque a sujeira que os impregnava atravessava séculos de uma dominação marcada pelo poder inquestionável e pelo medo, ambos disfarçados de caridade e benevolência. Por fim, ao olhar para relações tão determinantes deste modo de ser Brasil, Itamar Vieira Junior nos entrega mais um grande romance, onde a aspereza e a brutalidade convivem com o afeto e a prosa marcadamente poética tão característica do escritor, um dos nossos gigantes. 

Itamar Vieira Jr. Foto: Renato Parada.

Leia mais textos sobre as obras de Itamar Vieira Junior aqui no Culturadoria:

Torto Arado: “Sobre a terra há de viver sempre o mais forte”

Itamar Vieira Junior segue em busca das vozes silenciadas do Brasil em “Doramar ou a odisseia: Histórias”

Gabriel Pinheiro é jornalista e produtor cultural. Escreve sobre literatura aqui no Culturadoria e também em seu Instagram: @tgpgabriel

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