É o diretor Gabriel Villela quem conta. Quando Ariano Suassuna esteve na plateia de Romeu e Julieta, com Grupo Galpão, ao final da apresentação na Paraíba, levantou-se de maneira abrupta. Naquele tom discursivo que lhe era peculiar, disse: “Essa peça não tem diretor não, quem dirigiu isso fui eu. É a peça que eu dirigiria na minha vida”.
Era os anos 1990, Gabriel estava por perto mas, mineiramente, preferiu não se aproximar. Por respeito, por admiração. Afinal, de maneira, talvez, ancestral, Ariano sentira que a direção era dele. Hoje, ele que é um dos mais importantes encenadores do Brasil conta cena guardada na memória com sorriso no canto da boca.
A lembrança vem à tona às vésperas da estreia de Auto da Compadecida, texto de Suassuna que dirige com os atores do Grupo Maria Cutia. É a clássica história – que já virou filme – com as aventuras de Chicó e João Grilo pelo sertão nordestino.
A montagem começa sua trajetória pela Feira Nacional do Livro de Ribeirão Preto (09 e 10 de junho). Depois vai para o Festival Internacional de São José do Rio Preto (13 de julho) e para Passos, no Sul de Minas. A temporada em Belo Horizonte, por exemplo, será em agosto.
Origem comum
Quem conhece Ariano Suassuna, Gabriel Villela, Grupo Galpão, Maria Cutia sabe que artisticamente parecem ter saído do mesmo caldeirão. Entre eles há uma relação bastante próxima entre arte popular, a magia da rua, do circo, da poesia. Tudo isso, mais uma vez, foi para o palco/picadeiro.
É a primeira vez que Gabriel Villela monta um texto de Ariano Suassuna. Foi ele quem procurou o Maria Cutia. “Recebemos a ligação dizendo que estava fazendo 60 anos e gostaria de fazer algo marcante”, conta a atriz Mariana Arruda. A partir daí o processo se desenrolou à moda Villela.
Ou seja, os atores e produtores pegaram a estrada para Carmo do Rio Claro, no sul de Minas, onde ele tem uma propriedade rural. Garimparam por lá tudo que poderia ir para a cena. Dessa maneira, o que era velho ganhou novas pinturas por Rai Bento. Em resumo, até cabeceira de cama com arte do Vietnã entrou na onda.
A primeira sugestão de texto foi Mistero Buffo, de Dario Fo. Mas, dado o atual contexto da cultura no Brasil, o diretor sugeriu um clássico nacional. “Porque a experiência deles é muito de música de composição própria e achei que precisavam crescer na interpretação, na linguagem de cena, mudar os ventos. Aí o Suassuna casa muito bem com Minas. Minas casa bem com Pernambuco seja nos momentos da história do Brasil, até no momento barroco”, comenta o encenador.
Comédia
De acordo com Gabriel Villela, a atriz Dercy Gonçalves é a musa inspiradora da montagem. “É um tipo de compadecida”, reconhece. Segundo ele, os outros “santinhos” referência são Grande Otelo, Oscarito, Mara Arruda, Zezé Macedo. “Esse pessoal outrora que teve pé no circo. E que fez uma relação com o erudito e o popular, mesmo que na paródia”.
Ou seja, o espírito da revista norteia a montagem, respeitando o estilo da comédia de Suassuna. O encenador a descreve como “ligeira” e “higiênica”. “Você não pode sujar nada, senão não funciona”. A vivência que o Maria Cutia tem com a arte do palhaço, obviamente, é de grande valia. Mas a palhaçaria de Suassuna é diferente.
Estilo Suassuna
Nas rubricas do texto o autor pede que ele seja encenado em um circo. Há a figura do palhaço que introduz a linguagem do espetáculo pedindo que os atores cantem algo que nada tenha a ver com o espetáculo. Nessa relação de proximidade com a música é que o diretor situou a relação com os dias de hoje.
O repertório de Auto da Compadecida tem, entre outras canções, Alegria, Alegria, de Caetano Veloso, América do Sul, conhecida na voz de Ney Matogrosso, além de outros clássicos gravados por Elis Regina e Gilberto Gil. “A Tropicália é a base estética disso”, explica. A preparação vocal é de Babaya que também está na direção musical ao lado de Fernando Muzzi e Hugo da Silva.
A peça começa com a chegada do Bloco da Cutia, ou seja, em uma vibe bem carnavalesca. Além dos integrantes do Maria Cutia (Mariana Arruda, Leonardo Rocha e Hugo da Silva), também estão no elenco Polyana Horta, Malu Grossi, Lucas DeJota e Marcelo Veronez. “Eu brinco com o Marcelo que ele é a Ivete Sangalo de Belo Horizonte. Ele curte o carnaval, está em todos os blocos. E é uma pessoa icônica para isso”, comenta o diretor.
Crítica
A medida em que a peça foi sendo criada, tragédias ambientais e políticas foram deixando as marcas no processo. Assim, todo o figurino (assinado pelo próprio Gabriel com assistência de José Rosa) tem tons de terra. É uma referência explícita às catástrofes de Brumadinho e Mariana.
“Fiquei imaginando em um determinado momento se Brumadinho estourasse em cima de uma igreja barroca, como é que seria a indumentária dos santos local”, se perguntou o encenador. De acordo com a pesquisa feita para o espetáculo, há uma diferença no barro de Brumadinho para o de Mariana. “Fomos oxidando, colocando materiais de envelhecimento, até chegar naquilo que eu entendi que fosse aquela nata de barro. E a partir dele, a gente criou uma cartela quase monocromática. Aí eu entrei com a policromia por baixo”.
Toda a estética deste Auto da Compadecida segue à risca a estética Gabriel Villela . Da maquiagem ao figurino, passando pelo cenário, tudo faz lembrar montagens antigas como A Rua da Amargura e Os Gigantes da Montanha. Ambas foram feitas com o Grupo Galpão.
De acordo com Gabriel, agora chegou a hora do Maria Cutia. Usando uma metáfora da natureza, o diretor diz que os atores entraram no tubo do bicho da seda. “Eles já se meteram dentro do casulo. Vamos ver como é que eles vão sair de lá. A larva não anda para trás, ela vai embora”. Se é assim, que saiam lindas borboletas carregadas de poesia.
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