Formado por Well, Mirral ONE, Akila e georgeluqas, o ruadois resgata as raízes da música eletrônica e exalta o cotidiano belo-horizontino.
O que vem de pronto à cabeça quando o assunto é música eletrônica? A verdade é que, nas últimas décadas, as manifestações mais conhecidas desse estilo partiram do topo do mainstream. Ou seja, contando com artistas e festivais que figuram nas rádios e nas playlists mais badaladas mundo afora. Essa dinâmica, porém, configura um fenômeno brutalmente distante das raízes desse gênero musical.
A boa notícia é que Belo Horizonte é casa de um projeto que traz à tona justamente as origens desse estilo, contando com um catálogo singular na cena do rap brasileiro e erguendo shows que, literalmente, abalam as estruturas dos locais nos quais acontecem. Estamos falando do ruadois, grupo de música eletrônica periférica formado por Well, Mirral ONE, Akila e georgeluqas.
Para entender mais a trajetória e a estética desse quarteto, bem como compreender os respectivos laços com BH e Minas Gerais, o Culturadoria foi conversar com os artistas. Confira!
Começando “do começo”, vocês todos têm uma trajetória prévia ao ruadois. Como foi que se conheceram e decidiram dar partida ao projeto?
Mirral: Eu já tinha um corre de rap, pois rimo desde 2014. Entrei na cena por causa da dança e, daí, fui construindo minha carreira solo. Em 2018, conheci o Well, e, em 2020, fizemos um som juntos, uma música chamada “Nóis”. Daí, fomos estreitando a nossa amizade juntamente com esse lado profissional. Em 2021, o Well fez um EP chamado “Sparring”, e foi aí que me convidou para somar com ele. Como a produção já era do George, esse foi o primeiro contato entre nós três.
Diante disso, já tínhamos percebido que o trabalho dava muito certo, convidamos a Akila para fazer parte e assim surgiu o “Proibido Estacionar Vol. 1”, que foi o primeiro projeto do ruadois.
Well: A Akila até já tinha participado do “Sparring”, só que foi produzindo a capa do EP. Posteriormente, a galera já estava reunida, com tudo que precisava, e aí virou o ruadois de fato. O Mirral e a Akila eu já conhecia há muito tempo, da rua mesmo. O George, a gente conheceu por causa de um amigo em comum.
Foi na pandemia que todo mundo ficou mais próximo um do outro, viramos amigos mesmo naquele período. A gente sempre estava em call, jogando videogame junto, e isso ajudou muito nessa aproximação. Depois que a pandemia deu uma melhorada, começamos a nos ver mais, a ter esse contato pessoal mesmo. Então, já nos conhecíamos antes, já trabalhávamos juntos, e essa vivência da pandemia só ajudou nessa amizade, porque era um momento de lazer que a gente compartilhava.
Quem escuta vocês, logo de cara, já nota que são diferenciados, por conta da influência, principalmente, do Garage. Como foi o processo de formação dessa estética?
Mirral: A música eletrônica é um rolê que eu já tinha tentado participar antes, mas não me identificava com aquilo, já que rola essa gentrificação, esse elitismo. Quando a gente se refere às nossas músicas, fazemos questão de ressaltar que se trata de música eletrônica periférica. Conforme o tempo passa, esse contexto tem se tornado uma coisa diferente, tem vários artistas levantando essa bandeira que a gente levanta. Se você ver o nascimento do house, do disco, todo esse rolê envolvido com música eletrônica é um rolê preto.
Well: Como o Mirral falou, eu nunca tinha me sentido parte desse contexto da música eletrônica de antigamente. As referências que a gente tinha, comercialmente falando, são muito desconectadas da história desse estilo. Pegando pelo conceito, rap, funk, tudo isso que é produzido digitalmente pode ser considerado música eletrônica. Então, rolou muita apropriação.
Quando eu era adolescente, música eletrônica era coisa de playboy, e eu não sou playboy, eu não conseguia me ver ali. Essa sonoridade, porém, vem de pessoas parecidas com a gente. A proposta, portanto, passa por esse resgate das raízes da música eletrônica. Então, a gente levanta essa bandeira até para oferecer alternativas de produção de arte. O público abraçou a nossa estética, então, a gente não viu motivos para parar, tentar nos adequar a um certo padrão. Estamos criando nosso próprio estilo.
George: O que a gente faz é uma junção muito específica. Tem a história do Mirral, do Well, da Akila e a minha também. Em “fml”, o primeiro som que a gente fez juntos, tínhamos algumas referências muito claras, como o AJ Tracey, que é um artista que faz Garage. Mas, mesmo assim, a música saiu muito diferente dessa referência.
A original tem um vocal feminino, mais “para cima”, e não que a nossa não fosse, mas era mais pesada, tinha outro apelo. Daí, fomos evoluindo e testando mais coisas, como o drum n’ bass. Um amigo nosso até comentou, certa vez, que é como se fosse quando você vai dar um remédio para o seu gato, mas esconde o comprimido dentro do pão. É isso que a gente faz com as nossas referências.
Falando ainda sobre sonoridade, e até fugindo um pouco disso também, o som de vocês manifesta uma aura “punk”, por ser extremamente dinâmico, mas por também assimilar algumas coisas que não pertencem, pelo menos à primeira vista, ao rap e à música eletrônica, como o uso da guitarra que vocês fizeram no show da Virada Cultural. Como vocês selecionam essas influências que vêm de fora do escopo mais tradicional desses estilos?
George: Essa ideia da guitarra foi uma linha de raciocínio que eu não estava acostumado. Na época, a gente estava mixando uma música, daí, um dia eu caí em uma playlist que estava tocando “Raining Blood”, do Slayer, que começa com uma guitarra muito característica. Quando eu dei play nas duas ao mesmo tempo, vi que elas estavam no mesmo tom, e, aí, decidi usar isso na música que a gente estava fazendo. Assim, surgiu a ideia de levar a guitarra para o show.
Montamos, então, uma linha de guitarra para essa versão ao vivo da música – e a galera ficou maluca! Teve vídeo, a galera veio comentar com a gente depois do show. Nessa hora, a gente pensou: “Pô, funcionou”. O nosso público costuma nos ver como um lugar de novas ideias. Então, quando a gente experimenta, geralmente a galera compra a ideia. Temos sorte de ter um público tão aberto. Talvez seja até isso que atraia ele, a gente gosta muito de testar coisas novas.
Mirral: O ruadois é um amontoado de pesquisas e experiências. Tem, também, muito a ver com as coisas que já fizemos no passado, e como levamos isso para dentro do projeto.
O show de vocês é muito maluco, no melhor sentido possível! É gente dançando, moshando, perdendo um pé do tênis, perdendo até peruca! Isso é uma visão que vocês sempre tiveram para as performances ou aconteceu espontaneamente?
Mirral: Acredito que aconteceu naturalmente, não era uma parada que a gente tinha combinado. O primeiro show do ruadois foi na Beagrime, e foi uma coisa sem explicação. Marcou tanto que até virou o clipe de “Sprint” (risos). Nós vimos o potencial daquilo, como a galera chega junto, soubemos aproveitar isso. Também estudamos como interagir com o público, como ele está recebendo nosso som, como devemos nos movimentar e tal. Grande parte desse processo, porém, é natural mesmo. Tem coisas inesperadas que acontecem e temos que nos adequar a elas. Existem essas aberturas, isso faz parte do processo também.
George: Hoje em dia, sabemos como o público funciona. Temos um planejamento em cima disso, justamente para deixar nossos shows cada vez melhores. Mas é o que o Mirral falou, no primeiro show, a gente ficou surpreso, a Casa Sapucaí (local da apresentação) tremeu inteira, achamos que ia cair tudo (risos). O que aconteceu na Virada Cultural foi uma versão ainda maior disso.
Isso tem muito a ver com o que a gente sente em cima do palco também. Quando você vê a sua música sendo recebida daquele jeito, quer que aquilo aconteça sempre! É um prazer muito grande ver o poder do próprio som. Trabalhamos para proporcionar essa experiência mais vezes e para mais gente.
Well: A primeira vez que eu vi um mosh, presencialmente, num show de rap, foi em uma apresentação do Djonga, lá atrás, em um rolê na UFMG. Desde então, fiquei com isso na cabeça. Achava aquilo muito doido. O nosso tipo de som, a nossa experiência de outros carnavais, ajuda muito nesse engajamento do público. Na Beagrime, a gente só cantou e a galera veio junto.
Hoje, tentamos passar essa mesma sensação, mas de uma forma mais organizada, mais estratégica. As coisas vão crescendo e temos que nos adaptar a isso. Por exemplo, nós tínhamos uma questão com palco pequeno e palco grande, porque tocar perto da galera era mais fácil para nós. Então, quando fomos para a Virada, para um palco daquele tamanho, e o show foi o que foi, é uma prova que estamos no caminho certo. Essa energia, esse espírito, é uma coisa muito de BH, e é muito legal dar continuidade nisso.
George: Sobre a Virada, tem uma coisa muito importante que nós observamos. Todos os shows que fizemos na rua, de graça, que o público podia só colar e conhecer, foram os que a galera mais se empolgava. Esses momentos que todo mundo se sente mais à vontade são importantes demais para nós.
Nas músicas, vocês usam várias gírias típicas do “mineirês”. Como é a relação de vocês com BH e com Minas? Esse uso das gírias foi pensado ou surgiu naturalmente?
Mirral: Acredito que a nossa composição está atrelada à vivência, colocamos nosso cotidiano na parada. Até as coisas que escutamos também são assim, né? Quando a gente escuta Racionais, o Mano Brown fala da área dele, das ruas pelas quais ele passa todo dia (risos). Então, tem essa identificação.
Quando o Well fala “sem brava” nas músicas, isso é uma gíria total daqui de BH. Quem é de fora demora um pouco para entender, mas isso faz parte do processo também. Por exemplo, uma vez eu ouvi um cara de Fortaleza que falava “é sal” nas músicas, e eu ficava: “pô, o que esse mano quer dizer com isso?”. Então, ia atrás do significado, achava isso muito doido. Mas, às vezes, até pela forma que você coloca essas gírias no verso já dá para entender pelo contexto.
Well: Quando a gente escreve, eu me preocupo muito com essa questão da identidade. Levamos, de forma sutil, nosso cotidiano, nosso dialeto para frente e para fora. Como o Mirral ressaltou, fazemos isso de uma forma que as pessoas vão compreender e até reproduzir. Quando colocamos esses elementos de BH, de Minas, mantemos as características regionais do nosso rap, bem como não deixamos nossa identidade se plastificar perante uma demanda carioca ou paulista, sabe?
Estamos no sudeste, um lugar mais privilegiado, com mais acessos e contatos, mas uma das nossas ideias é não perder a nossa regionalidade. Sendo assim, não queremos ser confundidos com um rapper, um produtor ou DJ de São Paulo. Somos de BH! Até nos rolês mesmo isso acontece, vemos gente falando: “nossa, achei que tal artista era de São Paulo!”, sendo que a pessoa mora no mesmo bairro de quem falou (risos).
George: Isso também é uma forma de homenagear a pista de BH. Já fomos para o Rio, para São Paulo, e as pistas são muito diferentes, a galera não entra tanto na onda do artista. Aqui, em BH, tem até gente que fala que sonha em tocar aqui. Por exemplo, na Beagrime, tem artista que vem de fora e a pista fica cabulosa do mesmo jeito. Então, queremos levar essa parte de BH para fora também.
E o futuro? Já têm algum projeto engatilhado?
Well: Começamos a trabalhar no nosso álbum novo, que vem aí ano que vem.
Mirral: Álbum de estreia do ruadois! (referindo-se ao fato de ser um disco cheio, e não EP). Mas, fazer um álbum não é fácil, para fazer direito, fechadinho, requer tempo. Já viemos de um projeto grande também, o EP “Proibido Estacionar Vol. 2”. Estamos trabalhando num pós-EP também. Graças a Deus, estamos abarrotados de coisas para fazer.