
Pássaros na boca: O terror cotidiano de Samanta Schweblin em dose dupla
Samanta Schweblin. Foto: Alejandra López
Samanta Schweblin. Foto: Alejandra López
Fósforo Editora lança livro reunindo dois volumes de contos da autora argentina: “Pássaros na boca” e o inédito no Brasil “Sete casas vazias”
Por Gabriel Pinheiro | Colunista de Literatura
“Pássaros na boca” reúne 18 contos publicados pela autora originalmente em 2009. Estão ali famílias, uma mulher grávida, um homem à espera do próximo trem na estação, a vida no campo e na cidade e um funcionário público realizando o censo populacional em um pequeno vilarejo. É a vida comum, acontecendo, sendo vivida. Mas o trivial está apenas nas aparências, na superfície. Neste insólito conjunto de narrativas breves, a argentina diz de terrores que invadem a suposta normalidade da vida dos personagens.
No texto que dá nome ao conjunto, um homem recebe a visita da mãe da filha dele. “‘Temos que conversar, Martín’ (…) ‘Você não vai gostar. É… é barra’, olhou o relógio. ‘É sobre a Sara'”. A garota adquiriu o hábito de comer pássaros vivos. Pequenos seres mantidos em gaiolas até a próxima refeição. Tomado por um terror profundo e por uma repulsa inevitável, o pai busca entender esta nova realidade imposta em seu cotidiano familiar. Quem é a filha?
“Quando Sara se virou para nós o pássaro tinha sumido. Sua boca, o nariz, o queixo e as duas mãos estavam cheios de sangue. Sorriu, envergonhada, sua boca gigante se esticou e abriu, e seus dentes vermelhos me fizeram levantar de um salto.”
Schweblin tem um dom especial para a brevidade dos contos, não se ocupando com descrições longas das cenas, por exemplo. A prosa é econômica, ela parece se preocupar com o essencial. E o essencial aqui é a ambientação, extremamente vívida, que constrói. Nos detalhes, ela cria situações muito sensoriais. Enxergamos em nossa frente uma criança com a boca, o nariz e o queixo tomados pelo sangue de um pássaro. Ou a imagem de uma cabeça sendo repetidamente batida contra o chão até que comece a sangrar.
“Percebo que, antes da fúria, eu podia ver a imagem da cabeça sendo batida, o couro cabeludo se estatelar uma e outra vez contra as irregularidades do piso, a cabeça perfurada, o sangue adensando o cabelo.”
Escondidos sob o estranhamento de acontecimentos aparentemente inexplicáveis, os textos tratam de questões muito reais, comuns à nossa própria realidade. Por exemplo, a banalização e a espetacularização da violência contra a mulher. Uma esposa, assassinada pelo marido, é colocada em uma mala. O corpo – torcido, dobrado como um feto numa diminuta mala de viagem – ganha o status de obra de arte, numa das mais interessantes narrativas do conjunto. É o absurdo da ficção lidando com o absurdo do mundo real. Noutro texto, é pela sutileza que Samanta rememora o passado ditatorial da argentina, ao dizer da apatia e da inércia no presente de seus personagens.
“O inimigo foi audaz e não restam alternativas. Guerreiros, superiores e esposas ensinaram durante anos a lição de se levantar de imediato diante das primeiras notas do hino nacional. Não é obediência, e sim dor o que ergue cada um dos clientes derrotados. Permanecem no lugar, alertas porém já sem esperanças.”
Na melhor tradição do realismo fantástico latino-americano, o insólito, o sobrenatural, o grotesco está nessas narrativas de Samanta Schweblin como naturais, como se esses elementos sempre estivessem ali, na vida comum, no dia-a-dia. Cabe aos personagens ora aceitá-los, ora entrar em embate com eles – numa disputa onde acabam transformados pelo contato com o estranho, com o bizarro. Já ao leitor – após a surpresa, o choque inicial – cabe a tentativa de compreendê-los nas entrelinhas, naquilo que escondem no surpreendente jogo de luz e sombra que a narrativa da autora argentina constrói.
Em “Sete casas vazias” o terror cotidiano de Samanta Schweblin acontece, primordialmente, dentro do ambiente doméstico, entre quatro paredes. Se a casa é o lugar da intimidade, dos segredos bem guardados, se é o espaço onde nos despimos de nossas máscaras sociais, nessas narrativas ela se torna também um lugar do incômodo, da inquietação e do desconforto. Sob estruturas, que acreditamos firmes, escondem-se o medo, a dor, a inveja e a loucura.
Uma mãe, acompanhada da filha, tem o estranho costume de adentrar lares alheios, de pessoas estranhas. Lá, interfere na aparente normalidade daqueles ambientes, trocando móveis de lugar e subtraindo objetos. “‘De onde as pessoas tiram essas coisas todas? Viu que tem uma escada de cada lado da sala de estar?’ Ela apoia o rosto nas palmas das mãos. ‘Isso me deixa tão triste que me dá vontade de morrer.’’
As histórias do volume trazem, por vezes, a sensação de um pesadelo que se sonha acordado. Na inquietante ambientação desenvolvida pela autora, por exemplo, filhos desaparecem num piscar de olhos, num breve momento de desatenção dos pais. Em um dos contos, a criança, de mãos dadas com um desconhecido, entra em uma loja de departamentos para, juntos, comprarem uma calcinha. É de prender a respiração. Noutra narrativa, uma mulher é obrigada a reviver um luto e uma dor que não são dela quando, repetidamente, a vizinha joga as roupas do filho morto em seu quintal.
“Os punhos do senhor Weimer chamam outra vez (…), é um pobre vizinho atormentado por sua mulher, alguém que não sabe muito bem como seguir em frente com sua vida, só que nem por isso deixa de tentar. (…) Quando a mulher joga a roupa do filho morto em meu jardim, ele bate na porta para recolher tudo”.
Composto principalmente por breves contos, o livro contém uma narrativa mais longa, uma novela. Nela, uma mulher aguarda, na verdade, anseia pela morte, que insiste em não chegar. “Seu corpo voltava a despertar a cada dia. Era algo insólito e cruel”. Enquanto isso, ela segue encaixotando seus pertences e do marido, para não deixar para outrem a obrigação de guardá-los e organizá-los após a morte. A chegada de novos moradores na casa ao lado interfere na rotina da mulher, amedrontada pelo estranho comportamento do jovem filho da vizinha. Página após página, o relato da personagem se torna cada vez mais duvidoso, quanto mais fragmentado fica seu psicológico e obsessivas as suas atitudes.
Em “Sete casas vazias” o terror de Samanta Schweblin é menos violento e menos surreal que o de “Pássaros na boca”, mas não menos incômodo e aflitivo. Caminhamos por uma prosa entre a vigília e o sonho, numa escrita que dá a ver aquilo que se esconde nas ranhuras de paredes e alicerces apenas aparentemente sólidos de um lar doce lar.
Encontre “Pássaros na boca e Sete casas vazias: contos reunidos” aqui
Gabriel Pinheiro é jornalista e produtor cultural. Escreve sobre literatura aqui no Culturadoria e também em seu Instagram: @tgpgabriel (https://www.instagram.com/tgpgabriel)
Publicado por Gabriel Pinheiro | Colunista de Literatura
Publicado em 06/09/22