
Cena de Mank, da Netflix. Foto: Netflix/Divulgação
Você já reparou que com alguns filmes a experiência depois que ele acaba chega a ser até melhor do que durante a projeção? Foi o que eu senti vendo Mank, o novo do diretor David Fincher, já disponível na Netflix.
São cerca de 130 minutos, em preto e branco, com muitos flashbacks. Tudo para contar a história dos bastidores da criação do roteiro de Cidadão Kane por Herman J. Mankiewicz, no caso, Gary Oldman em mais um excelente trabalho. Bem, o filme não é só isso. Foi exatamente esse “algo mais” que me fez gostar dele alguns minutos após o stop.
O roteiro
O roteiro de Mank foi feito por Jack Fincher, pai de David. Ele morreu em 2003 e coube ao filho recuperar as páginas escritas. É difícil acreditar que o diretor de Seven e A rede social não tenha dado uma leve adaptada. Se realmente não fez isso, é surreal como Jack foi cirúrgico nas críticas que faz à política, a relação entre poder e entretenimento. Dá para pensar até sobre fake news. Tudo isso com a era de ouro de Hollywood como pano de fundo.
Assim como no próprio Cidadão Kane, Mank faz uma colcha de retalhos com o passado do protagonista. Acompanhamos Herman atuando nos bastidores da poderosa indústria americana. Um network que incluía reuniões, jantares e, nessas ocasiões, embates públicos sobre os respectivos posicionamentos políticos.
Roube como um artista
Um artista é sempre a soma de tudo o que ele vive. E foi daí, da intensa e conturbada experiência de Hollywood, que Mank tirou todos os coelhos da cartola para fazer o roteiro deste que é considerado até hoje um dos maiores filmes de todos os tempos. Sendo assim, vale até rever Mank com a caderneta na mão para contar quantas vezes o bardo inglês, William Shakespeare é citado. São muitas.
De cabeça, lembro de Macbeth, Otelo. Os diálogos são sempre certeiros. Me perdoem o mini spoiler mas a cena em que Mank “interpreta” Dom Quixote, de Cervantes, é uma das melhores do filme inteiro. Quem concorda?
Ainda nesse departamento das palavras, é marcante também o primeiro encontro entre William Hearst (Charles Dance) e Mank. Eles estavam na reta final do cinema mundo. Os filmes começavam a ter voz. De uma carreira como dramaturgo e crítico de teatro em Nova York, Herman se assumia como um “humilde roteirista”. “Há uma era dourada chegando em que o mundo será um palco e o senhor, provavelmente, o Shakespeare deles”, professou Pops.
Ficção e realidade
Tem outros temperos nesse pano de fundo do roteiro de Cidadão Kane que nunca saberemos o que é verdade ou ficção. Muitos desses fatores determinantes de sucesso foram propiciados pelo próprio Orson Welles (papel de Tom Burke, o Dazzle de The Crown), diretor do longa.
Orson Welles estreou como garoto prodígio de Hollywood. De posse de uma carta branca, foi no melhor roteirista – no caso Mank – o isolou, afastou dos vícios, estabeleceu um prazo (o tal do cachorro preto da inspiração) e recebeu uma obra prima. Só não contava que Mank teria um significativo pedido a fazer.
Passado e presente
Ao retratar o passado, sem deixar de refletir o presente, Mank é uma bela homenagem ao cinema. Inclusive com os podres que fazem parte do jogo. A escolha pela fotografia em preto e branco, uma captação de som que faz lembrar o áudio abafado das produções daquela época, contribuem para criar o clima. Mas foi um detalhezinho, no canto superior direito da tela foi, para mim, o ápice dessa reverência ao cinema.
Na época em que os filmes eram exibidos em rolo, antes de uma bobina acabar, aparecia um sinal na tela. Ou seja, era uma comunicação para o projecionista ficar ligado. Fincher usa esse recurso no filme toda vez que o tempo vai e volta.
Certamente estes preciosismos serão reconhecidos na temporada de prêmios. Sendo assim, Mank tem tanto potencial para indicações a categorias técnicas como nas principais. Será que David Fincher leva a primeira estatueta para casa? O papel de Mank é mais um daqueles talhados para prêmio e Gary Oldman fez a parte dele. Mas não acho que tenha sido tão extraordinário como o Winston Churchill em A hora mais escura, que lhe deu o Oscar.

Cena de Mank, da Netflix. Foto: Netflix/Divulgação
Homens à frente
Mank também é aquele tipo de filme que reforça o patriarcado. As mulheres, portanto, têm papéis secundários mas com pontuações significativas. Sobre o elenco feminino vale ressaltar a renovação dos rostos. Apesar de 2020 ter sido uma tragédia para o planeta, Lily Collins não pode reclamar. Depois do sucesso de Emily in Paris (polêmicas à parte), ela surpreende na pele da secretária de Mank, Rita Alexander.
Vale destacar, ainda, os trabalhos de Amanda Seyfried (Mamma Mia e Meninas Malvadas) como Marion Davies e Tuppence Middleton (Sense8, O jogo da imitação) como Sara Mankiewicz.
ALERTA DE SPOILER
E a pergunta final que não quer calar: O que Orson Welles fazia no Rio de Janeiro em 1942. Se você, assim como eu, deu um Google para saber, descobriu que ele ficou seis meses por aqui para fazer um documentário. Tinha nome, It’s all true, mas nunca ficou pronto. Mas, essa visita foi tão emblemática, que a guia de turismo Juliana Fiuza criou um roteiro pelo centro da cidade para revelar o que o diretor fez por lá.
A passagem de Welles pelo Brasil também virou um documentário. A Jangada de Welles é de Firmino Holanda e Petrus Cariry. Em setembro de 2020, esteve em cartaz exibido na Mostra de Cinema de Ouro Preto e segue percorrendo festivais digitais.