
O surrealismo cotidiano de “Submersa”, novo álbum de Lica Del Picchia
Lica Del Picchia - Foto: Danilo Alvarez
Lica Del Picchia - Foto: Danilo Alvarez
Primeiro trabalho solo de Lica Del Picchia, “Submersa” mistura a experimentação sonora com elementos clássicos da música brasileira.
Por Caio Brandão | Repórter
Uma das faces mais familiares da música independente belo-horizontina, Lica Del Picchia alça, pela primeira vez, um voo solo. A cantora ergue, assim, o álbum “Submersa”, uma obra emocionalmente visceral, que usa o pop experimental como base para meditar sobre diversos âmbitos do ato de viver e os desdobramentos que tal dinâmica propõe.
O disco, que já está disponível nas plataformas de streaming, opera como uma confissão musical acerca de temas como dores, confusões, amores e sensualidades descobertas pela cantora nos últimos três anos, período em que a obra foi criada e produzida. Sendo assim, conversamos com Lica para entender o processo criativo por trás de “Submersa”
Não importa quem você é, de onde veio, e para onde vai: se você viveu a pandemia da Covid-19, com certeza saiu dela mudado de alguma forma. Nesse sentido, Lica conta que a instabilidade desse período serviu de base para várias das emoções presentes em “Submersa”. “Nos primeiros seis meses, que foram os emocionalmente mais confusos, a gente não tinha informação de nada. Não sabia o que que ia acontecer, não sabia se a gente ia ficar em casa 15 dias, 30 dias, 30 meses, 30 anos…”
“Esses meses foram meio estáticos demais, mas com muito sentimento, muita confusão, muita coisa para dizer, sem ter com quem falar. Essas letras vieram nesse momento, principalmente, de ter muito o que expressar, de não saber nem por onde começar e nem pra quem falar. Então, decidi escrever sobre essas coisas, e as letras foram começando a sair.”
Há quase dez anos trabalhando com música, principalmente por meio da banda Cayena, a cantora se vê em um novo momento, artístico e pessoal. “Eu estou bancando pela primeira vez um trabalho solo. Esse som que eu estou trazendo agora, ele é muito diferente da Cayena, porque é um outro lugar, uma outra expressão. E essa coisa de bancar sozinha trouxe a intensidade também, sabe? Preciso ser clara com o que eu quero dizer, preciso ser honesta com o que eu estou sentindo.”
A realidade do artista independente não é glamurosa, e isso não é novidade. Nesse momento, contudo, surge a questão da coletividade como resistência a tal contexto. “Eu sou filha de atores de teatro, da Lydia Del Picchia e do Chico Pelúcio, do Grupo Galpão. Sendo assim, eu cresci com o trabalho em grupo, com a coletividade. Então, para mim não existe, nem nunca existiu, o conceito de fazer as coisas sozinha. Cresci nesse ambiente da coletividade, do um por todos, todos por um. O que você não dá conta eu faço, vamos negociar, vamos balancear”, contou Lica.
Nesse sentido, a cantora sempre faz questão de exaltar o auxílio de outras pessoas, bem como as relações que floresceram nesse processo. “Ao longo desses nove anos que eu trabalho com música, construí relações muito honestas. Pessoas viraram minhas amigas, moraram na minha casa, dividiram a vida comigo.”
“Quando chegou, enfim, o momento de lançar esse trabalho solo, eu vi que precisava de ajuda, que não conseguiria fazer isso sozinha. Assim, me juntei com essas pessoas que são grandes amigas minhas, bem como profissionais extremamente competentes. Eu brinco que esse álbum é solo só porque leva meu nome, já que, de solo, não tem nada (risos).”
Somada a essa coletividade, Lica ainda celebrou a colaboração com outro grande nome da música contemporânea de BH, Mac Júlia, na faixa “Te Quero Mais”. “A participação da Mac Júlia foi algo muito natural. A gente já tinha conversado antes, ela já tinha ouvido nossas ideias e topado colaborar. A partir daí, ela foi comigo e com o João Myrrha (produtor do álbum) para minha casa, onde gravamos uma jam.”
“Então, depois de uma meia horinha de conversa e umas cerveja, fomos gravar e, já na primeira tentativa de gravação, que era para ser só um teste, ela já cantou do jeito que está no álbum. Claro que depois regravamos em um estúdio com mais recursos, mas a ideia surgiu nesse estilo freestyle mesmo.”
Quando, lá atrás, Michael Jackson ergueu o videoclipe para patamares nunca antes vistos, o visual se tornou, talvez, o maior potencializador da música. Nesse sentido, Lica não apenas compactua com essa ideia, mas também considera que o visual e o sonoro são indissociáveis. “O meu cérebro, bem como meu processo criativo, funciona assim. Uma coisa sempre foi casada com a outra. Eu falo que eu sonho em novelas mexicanas (risos)”
“Me juntei, então, com uma amiga minha, Raquel Ladeira, que é diretora de cinema, para pensarmos nessa parte visual. O desafio foi enorme, afinal, como fazer uma novela mexicana com 10 reais? Pensamos então em como traduzir a sonoridade das músicas para o visual, já que o álbum é diferente do que está rolando no mercado da música brasileira, mas, ao mesmo tempo, é influenciado por esse mercado. Percebemos, então, que deveríamos brincar com isso, com essa questão de ser familiar e estranho simultaneamente.”
O resultado? Paisagens que refletem o álbum sem esforço, mergulhando o comum no inusitado, sem deixar de perceber o ecossistema que possibilitou a existência desse trabalho. “Trabalhamos, assim, com cenas que são do cotidiano, mas que tem algo de surreal, seja uma iluminação, um som. É o possível misturado com o impossível. Tudo feito com a ajuda de muita gente, já que a produção independente é assim mesmo. Trabalhamos o mínimo de orçamento possível, e esse álbum só foi possível por conta de todos que acreditaram no projeto e deram uma mãozinha. Foi cara e coragem.”
Publicado por Caio Brandão
Publicado em 03/08/23