
Jeferson Tenório. Foto: Ranch Films
“O racismo não tem valor estético”, entrevista com Jeferson Tenório no Fliparacatu
Por Gabriel Pinheiro | Colunista de Literatura
Autor do celebrado romance “O avesso da pele”, vencedor do Prêmio Jabuti, Jeferson Tenório está no Fliparacatu para debater com o público e outros autores acerca de sua obra e dos temas circulam nessa primeira edição do festival. O escritor conversou com o Culturadoria sobre arte, literatura e ancestralidade, além das perspectivas sobre sobre o próximo trabalho e as adaptações de “O avesso da pele” para o cinema e o teatro. Confira:
Pensando no tema do festival, “Arte, literatura e ancestralidade”, como a sua ancestralidade adentra o seu projeto artístico e literário?
Bom, eu acho que a arte, a literatura e a ancestralidade estão muito interligadas. Penso que a ancestralidade não é algo só ligado ao passado, mas é também a presentificação daqueles que já se foram e da interferência também desses que já se foram, dos seus discursos. É uma forma também de nos tornarmos ancestrais em um certo sentido, porque é sempre uma celebração da vida, não é? Não é necessariamente sobre a morte ou a ausência. Na minha literatura a ancestralidade está muito presente, principalmente no “Estela sem Deus”, onde a minha personagem, de certo modo, exerce essa ancestralidade quando ela se volta para a avó, para as tias, as irmãs, ou seja, essas mulheres mais velhas que são muito sábias e carregam uma filosofia que passa a interferir nas decisões da Estela, uma adolescente. Então, quando isso acontece, você vê essa manifestação da ancestralidade.
Você tem um discurso muito forte acerca do racismo, dizendo que ele não é um tema na sua literatura. Gostaria de te ouvir falar mais sobre isso.
Dizer que o racismo não tem valor estético pra mim é no sentido de um argumento que busca não reduzir os livros produzidos por pessoas negras à questão racial. Nossos livros são sobre a vida, são sobre a existência, são sobre as relações familiares, sobre o amor, sobre a amizade. Claro, esses personagens são atravessados pelas questões raciais. Mas nenhum autor negro parte do racismo para criar, porque seria uma obra nefasta, seria uma obra que não que não condiz com a própria natureza da literatura que é a de contestar a vida, contestar a sociedade como ela é.
Então, é nesse sentido que costumo dizer que o racismo não tem valor estético, porque ele tem que ser colocado no seu devido lugar que é a lata do lixo. É um lugar em que ele deve permanecer e não creio que se utilizando desse discurso de que nós fazemos literatura sobre o racismo vá acrescentar alguma coisa. A gente tem que afirmar nosso valor artístico, estético e nesse sentido acho que a gente ganha mais força, porque a arte pode muita coisa, inclusive contra o racismo.
Me fala sobre o primeiro capítulo do “O avesso da pele”? Acho incrível como ele consegue abrir caminho para o que virá no livro, mas também funciona quase como uma história fechada, com começo, meio e fim. É uma das minhas aberturas de livro favoritas da literatura brasileira contemporânea.
É curioso, pois o livro não começava assim. Ele começava a partir do segundo capítulo mas, na reescritura, eu senti necessidade de fazer uma espécie de moldura ali. Uma espécie de abertura para o livro. E essa abertura tinha que partir do outro. Ali você tem uma cena dessa ausência, né? É uma discussão muito delicada a questão que se coloca ali.
O que você faz logo depois que um ente querido morre? Qual é a sua primeira atitude? A primeira atitude do Pedro é mexer nas coisas, nos objetos do pai. É dar essa concretude para a existência dele. E a única forma de resgatar essa ausência é através dos objetos que o venceram no tempo. É uma reflexão que ele faz, ou seja, os objetos que hoje fazem parte de nós, eles irão nos vencer no tempo. Eles vão ir além da gente e a partir disso irão reconstituir a história do pai. Não é a história do pai propriamente, é a visão dele em relação à vida do pai.
Como se deu a adaptação do “O avesso da pele” para o teatro? Há planos para o cinema?
A adaptação de “O avesso da pele” começou em 2020. O Coletivo Ocutá me procurou sobre os direitos autorais e a partir daí eu comecei a ter um diálogo com eles. Mas não foi um diálogo sobre construção dramatúrgica. Foi um diálogo para sanar algumas dúvidas que eles tinham em relação ao texto. E eu fui acompanhando, assim, paulatinamente. Eu não escrevi a dramaturgia. No próximo ano começam as filmagens da adaptação para o cinema. Vai ser dirigido pelo Sílvio Guindane, diretor que foi premiado agora em Gramado.
E sobre um possível novo romance, o que pode nos dizer?
Tenho trabalhado neste novo livro, um romance que eu já venho pensando há muitos anos, anterior, inclusive, ao “O avesso da pele”. Acho que eu não estava preparado pra ele ainda, mas agora chegou o momento de escrever essa história. O que eu posso dizer é que ela se passa no ambiente acadêmico. Será a trajetória de estudantes de Letras, História e Direito que entraram na universidade pelo sistema de cotas.
Como se sente agora no papel de editor na sua editora, a Diadorim? É uma mudança e tanto, não é? Daquele que é editado para aquele que edita.
É muito interessante você se apropriar desse lugar, porque aí você começa a ver o outro lado, né? Agora eu sou editor da Diadorim, uma editora de Porto Alegre e agora também de São Paulo. Eu tenho lido originais com o olhar de editor, que é aquele olhar que tem que ir além do olhar estético. Você também tem que ter o olhar mercadológico, por exemplo. É uma outra dinâmica. É uma experiência muito gratificante poder ler um texto e conversar com o autor, sugerir algumas mudanças. Está sendo um momento bastante especial.
* O Fliparacatu é patrocinado pela Kinross, por meio da Lei Rouanet. O Culturadoria visita o festival a convite do patrocinador.