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Gastronomia Boêmia: um roteiro para explorar a Guaicurus

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 Por Gabriel Lacerda e Thiago Fonseca 

Ivonilda Silva não revela idade e é de pouca fala. Ainda está tímida e receosa com as visitas curiosas. Chegou à ‘Pensão Mineira’, na Rua Guaicurus, em BH, há poucos dias e ainda tenta pegar o “jeito do serviço”. Quem conhece a fama da região deve pensar que Ivonilda trabalha como garota de programa. Mas não. A senhora de meia idade é a nova cozinheira do restaurante que fica no último andar do lugar. Diferente do que muita gente imagina, a zona boêmia da capital mineira ainda abriga bares e restaurantes, dentro e fora dos hotéis, de boa comida e que qualquer um pode acessar.

O restaurante que Ivonilda trabalha é um dos poucos que ainda funcionam dentro dos hotéis destinados a prostituição na região da Guaicurus. Além do dela, há o estabelecimento comandado por Eunice Perpétua. Conhecida na região como Nice, que chegou à zona há quase 50 anos. Aos 64, é responsável pelo restaurante do Hotel Stylus, na Rua São Paulo, 190. O ofício de cozinheira nem sempre foi sua ocupação principal. Por 30 anos da vida trabalhou como profissional do sexo.

Saiu de Itabira, aos 16 anos, para ser babá, entretanto, foi parar na prostituição por indicação de uma amiga. Viu e viveu mudanças na região. Dessa forma, o passado, Nice lembra com graça e saudosismo. Conta com emoção como era o trabalho. Para chegar até a cozinha dela é preciso subir três andares. Na cozinha de Nice o cliente pode se servir à vontade. Um prato com arroz, feijão, carne do dia, guarnições e salada, por exemplo, sai a R$ 14. Uma comida saborosa, de encher os olhos e que faz lembrar casa de vó. O almoço pode ser degustado dentro da própria cozinha, no bar ao lado ou levado em uma marmita.

Foto: Thiago Fonseca / Divulgação

 

 

COMIDA QUE ENCANTA

Hoje, Nice trabalha praticamente sozinha no restaurante, recebe ajuda da amiga Cleide, que também foi garota de programa, e, atualmente toma conta do bar no mesmo hotel. A cozinheira continua morando em um dos quartos. Não teve filhos e nem marido. À noite, vai para o EJA (Educação de Jovens e Adultos) e nas horas vagas se dedica ao artesanato.

O tempero de Nice conquista todos que passam por lá. Um grafiteiro de Manaus que participou de uma intervenção do projeto Museu do Sexo, em 2017, e almoçava todos os dias no restaurante, resolveu fazer uma homenagem à Nice de tanto que gostou da comida e da simpatia dela. Sendo assim, grafitou a cozinheira em um muro e em um hotel da Guaicurus como a “Santa da Luz Vermelha”.

 

Nice foi grafitada como santa em um muro da Rua Guaicurus por um artista de Manaus em 2017 / Foto: Thiago Fonseca

 

A SANTA DA LUZ VERMELHA

A clientela fiel do restaurante de Nice são as meninas dos hotéis, porque poucos sabem que se trata de um restaurante aberto ao público. Mas ela explica que alguns dos clientes são lojistas da região, visitantes dos hotéis e amigos que fez na vida. Nice é uma personalidade local. É conhecida por todos e considerada como uma mãe para as meninas que trabalham no Hotel Stylus.

“A comida da Nice é deliciosa. Todos os dias como aqui e pago só no final da semana. Gosto dos pratos mais molhadinhos. Até engordei um cadinho por conta da comida da Nice”, conta Aline*. A jovem de 23 anos, que chegou há um ano no Hotel magrinha, como diz Nice, hoje está encorpada por conta dos quitutes da cozinheira. Assim também, como as meninas, quem sempre volta ao restaurante de Nice são os visitantes do Movimento Distrito Guaicurus.

 

 

 

 

GUAICURUS DE PORTAS ABERTAS

O projeto criado pelo dono do Magnífico Hotel e cozinheiro, Flávio Dornas, busca abrir a região para o turismo, à gastronomia e aos eventos. “O projeto é para falar sobre a valorização da história e das vozes da região. A partir da criação do movimento é preciso criar olhares e esses olhares são vários. A arquitetura, o turismo, a música e a gastronomia. A gente tenta chamar a atenção para que as pessoas se interessem e pesquisem sobre o lugar. Dessa forma, escolhi a gastronomia”, explica Flávio.

Uma vez por mês, em média, o empresário reúne cerca de 20 pessoas para conhecer a região. O ponto de encontro é o Escândalos Bar, no Hotel Concord, na rua Curitiba, 248. Lá, Flávio fala sobre a área e dá um apanhado histórico para os participantes. Depois o passeio segue por pontos de referência da Guaicurus, como por exemplo, o hotel no que a Hilda Furação trabalhou. Por fim, a última parada é o restaurante de Nice. “É importante que o roteiro gastronômico mostre a importância da Guaicurus para a cidade sem expor as pessoas que trabalham aqui”, pontua.

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GASTRONOMIA LIGADA AO PASSADO

A gastronomia está atrelada à região há anos. O Hotel que Flávio herdou da família funciona há mais de 70 anos. No passado o lugar abrigava restaurante. Os corredores largos do Magnífico revela que, entre os quartos destinados à prostituição, as pessoas se divertiam em mesas, bebendo e comendo. Antes, quando Belo Horizonte foi construída entre 1894 e 1897, os hotéis dali funcionavam como cabarés, semelhantes aos da TV. Muitas pessoas, comida, música e diversão.

A Região da Guaicurus, nos primórdios da cidade, abrigava o primeiro setor atacadista da capital mineira, pois era um corredor natural que ligava a Praça da Estação à região do Bairro da Lagoinha. Ao longo dos anos, juntaram-se outras indústrias atacadistas de mantimentos e outros serviços, como por exemplo de de hospedaria, barbearia e alfaiataria. Ainda no passado, o desenvolvimento da indústria sofreu dificuldades por causa das inundações do Rio Arrudas e mudou-se para as Avenidas Afonso Pena e Raul Soares. Dessa forma, a rua Guaicurus transformou-se em um espaço de boêmia, cheio de bares e cabarés.

 

Rua Guaicurus na década de 60 / Foto: Arquivo Fabiano Campos

 

ZONA BOÊMIA

Documentos da época, presentes no arquivo público municipal, mostram que haviam estabelecimentos de todos os tipos e para todos os públicos. Cabarés com garotas de programas de vários estados do Brasil e até de outros países. De importante e elegante zona boêmia, com o tempo, a região dos Guaicurus acabou se marginalizando e se tornando uma área do baixo meretrício. “O que se conta é que a alimentação dentro dos hotéis acabou por conta de uma questão empresarial no sentido de que a noite das cidades migrasse para outras regiões. E por conta disso os hotéis pararam de vender comida”, conta Flávio.

Dessa maneira, a região Boêmia se diluiu para outros bairros da cidade, como o Barro Preto e Savassi. Entretanto, a região continuou movimentada e em locais em que se tem gente, e principalmente a trabalho, é preciso ter alimentação. Se apenas poucos restaurantes como o de Nice e de Ivonilda sobrevivem nos hotéis, os localizados fora deles e o comércio ambulante de alimentos estão a todo vapor.

 

 

 

COMIDA MINEIRA

Há 30 anos o bar ‘Zero Hora’, localizado na Avenida santos Dumont, 587, é uma opção de alimentação para quem está na região. O forte de lá não é a comida a quilo ou pratos, mas sim, o caldo de Mocotó. Segundo o gerente do estabelecimento, Moisés de Oliveira, o tira gosto está presente na casa desde quando abriu e é o que mais vende. Basta pagar oito reais e saborear a delícia.  Dessa maneira, para dar conta da clientela, Moisés prepara caldeirões de caldo. Além do quitute, os visitantes podem se saborear com tira gostos e tropeiro. Em sua maioria, segundo o gerente, são clientes dos hotéis e pessoas que trabalham no comércio da região.

Não muito distante dali, na mesma avenida, está instalado o restaurante ‘Sal e Brasa’. Sob Gerência de Benjamim de Almeida, há dois anos, o restaurante chama atenção na região. Não por ser chique, mas sim pelo cardápio vasto e ambiente aconchegante. Um prato self service, caprichado e com direito a churrasco, sai a doze reais. Na hora do almoço quem enche as mesas do estabelecimento são as profissionais do sexo que saem de seus hotéis para saborear a comida. Trabalhadores da região também dividem o pódio de frequentadores.

Outros dois restaurantes estilo self service que movimentam a região são o ‘Bar do Vovó’ e o do ‘Ney’. Ambos localizados na Rua Guaicurus. A comida é simples, mas enche os olhos de brilho e a boca de saliva de quem vê. Os locais são pequenos, dá até para saborear a comida por lá mesmo, mas quem preferir melhor conforto, pode levar uma quentinha para casa. No cardápio, comidas mineiras e do dia-a-dia.

 

Macarrão ramen mergulhado em caldo servido no restaurante ‘Chen Chang Kee Noodle House’

GASTRONOMIA MUNDIAL

Em meio às opções de comida mais “comuns” dois restaurantes de comidas típicas chamam a atenção na região. Um deles é o restaurante ‘Chen Chang Kee Noodle House’, na Rua Curitiba, 130 e o ‘Empório Sírio Libanês’, na Rua Rio de Janeiro, 211. O primeiro é conhecido como Restaurante chinês, escondido no último andar de uma galeria. O espaço é pequeno, mas o local é onde você poderá comer uma comida chinesa mais próxima da realidade, sem precisar ir até o país asiático.

A clientela é formada basicamente por chineses que trabalham nos shoppings populares. Entretanto, o movimento maior é de pessoas que pegam comida para levar. Poucos brasileiros passam por lá. A a atmosfera do local é ímpar, bem diferente dos tradicionais restaurantes chineses da cidade, que servem receitas cantonesas.

Já o ‘Empório Sírio Libanês’, está no local há 80 anos. A comida típica da síria, como kibes, sanduíches árabes e esfihas, podem ser saboreada por qualquer um que passa por lá. Hoje, o movimento enfraqueceu, mas no passado era point no hiper centro da capital. Prova disso é o enorme balcão bem na estrada do estabelecimento.

Os shoppings populares da região, como o Oiapoque e o Xavantes, também são opções de gastronomia nas redondezas da região da Guaicurus. Por lá, é possível encontrar uma variedade de comidas e tipos de alimentação.

 

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Diferente dos estabelecimentos fixos, um outro tipo de comércio gastronômico que faz sucesso na região é o ambulante. Não é de hoje. No passado, comerciantes que vendiam angu à baiana em carrinhos já davam as caras na região durante a noite para alimentar as meninas que trabalhavam por lá. Um dos mais famosos foi o angu do Jesuíno, que ficava debaixo do viaduto. Já nos dias atuais, segundo Flávio, por dia passam dezenas de vendedores no hotel em que ele é gerente e nos das redondezas. O forte são as refeições no almoço e os lanches. Mas dentro dos hotéis se vende de tudo, desde café da manhã até jantar.

Carlos Souza, de 46 anos, é um dos comerciantes que trabalha como ambulante nos hotéis. Vende quentinha apenas no almoço. A comida é preparada em casa, por ele e pela esposa, no bairro Goiânia, na região nordeste de BH. Entrou no ramo após ficar desemprego em 2016, desde então, sustenta a família com a nova ocupação. De acordo com Carlos, a venda já esteve melhor, hoje em dia, vende cerca de 100 marmitas à oito reais cada.

O cardápio é variado e garante que a comida é preparada com cuidado e amor. A clientela fiel são as profissionais do sexo. De segunda à sexta, Carlos vai de quarto em quarto, em pelo menos dez hotéis da região. Algumas são clientes fixas, outras conquistam com o tempo. Os funcionários dos hotéis, segundo o comerciante, vez ou outra, também compram a comida.

GASTRONOMIA QUE ROMPE PRECONCEITOS

Um comércio que movimenta a economia local. Vale ressaltar que a alimentação na região é diurna. Dessa maneira, são pouquíssimos bares que funcionam à noite, até mesmo por questão de segurança. Sair de casa para ir até um dos restaurantes ou bares da região da Guaicurus é uma experiência diferente. Além de ser uma experiência gastronômica também é cultural.

“Quando você está conhecendo uma cultura, um lugar ou uma cidade a melhor maneira de conhecer aquele espaço é comendo as comidas típicas. Sendo assim, em relação à Rua Guaicurus, eu acho que, além de desmistificar a região, é importante para a pessoas verem como tudo acontece por aqui”, afirma Flávio.

Ainda segundo ele, a experiência vai além da questão da desmitificação. “As pessoas precisam conhecer a cidade na qual elas moram. Acho que tem a questão da quebra do preconceito, né? Já vi gente que tem ‘nojo’ em comer algo da região, mas que nunca viu a cozinha dos restaurantes que elas comem. A pessoa já vem aqui com preconceito. São preconceitos com as pessoas e não com as comidas. É conhecendo a região que isso vai acabar ”.

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