
Os singles giram a roda da indústria fonográfica. Foto: Fixelgraphy on Unsplash
Um sentimento comum na contemporaneidade é a sensação de estar perdido em meio a tantas notícias, novos filmes, novas tecnologias e, é claro, novas músicas. O cenário musical é rico e efervescente, e, raramente, os ouvintes ficam sem atualizações de seus artistas preferidos. Na enxurrada de lançamentos diários, sentir-se atrasado é lei. Nesse contexto de constantes novidades, uns dos atores principais são eles: os singles, formato de lançamento curto, que costuma ter de uma a três músicas.
Você já parou para pensar no modo como esse padrão se fortificou atualmente? Para entendê-lo, ressalte isto com marcador de texto fluorescente: o funcionamento da indústria musical é sempre influenciado pelas tecnologias vigentes, que regram, de alguma forma, a produção e a distribuição das canções. Ao seguir tal linha, já se pode imaginar que, para compreender o boom dos singles atual, é preciso se debruçar sobre as plataformas digitais, e, mais especificamente, os streamings.
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Jogar o jogo das plataformas
Para esses gigantes, quanto mais tempo ficamos em frente às telas, melhor. Alcançar o maior tempo de uso possível de seus usuários é a meta. Por isso, o fluxo de novidades nesse meio é tão intenso. O ambiente musical contemporâneo se baseia, sobretudo, em plataformas como Instagram, Spotify e YouTube, o que explica porque é tão essencial a constância de lançamentos.
Para Juliano Alvarenga, vocalista da banda belo-horizontina Daparte, a máxima é “não sumir das suas redes”. Não é mais interessante passar tanto tempo ausente, trabalhando em um álbum, como acontecia em outros tempos. Hoje, lançamentos ininterruptos significam estar “constantemente chamando as pessoas para as plataformas”, destaca Luís Couto, vocalista da banda Devise, também de BH. Fortes aliados de tal estratégia, os singles se amplificam agora, justamente, por serem um tipo de lançamento mais rápido.
Singles não são novidade
Bom lembrar que o formato não é novo. Afinal, os singles foram muito fortes nos anos iniciais do rock, tanto na Europa como nos Estados Unidos, nas décadas de 1950 e 1960. O modelo teve grande penetração, principalmente, entre os jovens consumidores, e ajudou a incorporar, no mercado, um público de menor poder aquisitivo. Juliano Alvarenga lembra que “o próprio Elvis Presley lançava singles de dois em dois meses”.
Com o tempo, o formato se aliou a estratégias de vendagem mais intensa, diferentemente dos LPs (discos de longa duração), mais ligados à consolidação da identidade e da carreira do artista. Os modos de distribuição musical foram se transformando, alguns suportes perdendo popularidade, enquanto outros ascendiam. Os singles, porém, sempre estiveram presentes. Seus usos e significados, contudo, jamais foram estáveis. Na atualidade, eles se inserem numa dinâmica bem diferente.
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Escuta personalizada
Os serviços de streaming incentivaram a ascensão do formato não apenas por meio da pressão por novidades e pela constante presença dos artistas, mas ao inaugurar uma nova forma de escuta. O algoritmo das plataformas, especialista em construir listas de reprodução baseadas nas preferências e nos gostos dos ouvintes, fortalece um tipo de escuta fragmentada. Ou seja, as obras dos artistas são misturadas, entrecortadas e organizadas segundo os gostos individuais.
A reunião de canções em um álbum – feita, pelo artista, como forma de construir uma obra integrada, com significado intrínseco – perde um pouco de espaço, enquanto as playlists ganham relevância. A escuta, agora, é muito mais definida pelo ouvinte, que decide, nas listas, quais canções entram, quantas e em que ordem. Os álbuns são, agora, ouvidos de forma mais fragmentada, burlando a escolha prévia dos compositores.
A partir desses novos hábitos musicais, torna-se muito relevante para os artistas participar das playlists, tanto de ouvintes quanto dos próprios serviços de streaming. Hoje, gastar tempo demais na produção de um álbum, e se ausentar das plataformas, parece algo nada recomendável. Principalmente no que diz respeito à relação com os públicos.
As estratégias
Mesmo que os álbuns estejam dividindo espaço com outras formas de lançamento mais sintéticas, não quer dizer que seu valor artístico esteja comprometido. Ainda é muito importante, para construção da identidade e da imagem de músicos ou bandas, o lançamento de obras mais coesas.
Por isso os singles continuam funcionando, muitas vezes, assim como na época dos discos de vinil, como preparação para o álbum. A diferença é que, antigamente, costumava-se trabalhar com cerca de três singles pré-álbum; hoje, os artistas apresentam novidades em quantidade bem maior. Billie Eilish, por exemplo, lançou mais de quinze singles antes de seu disco de estreia, When We Fall Asleep, Where Do We Go?, de 2019.
A explicação está nas playlists produzidas pelos serviços de streaming. Isso vai além da exigência por novidades constantes e da mudança na forma de escuta dos ouvintes. Para o artista, entrar numa delas significa muitos plays, além deum importante passo para construir audiências maiores. Trata-se de grande conquista e, portanto, de grande meta. Para entrar numa playlist, no entanto, apenas uma faixa por lançamento pode ser enviada à avaliação dos editores. Ou seja, mesmo em um álbum, com várias opções, só há uma chance. Lançar vários singles e ter várias tentativas mostra-se, então, cada vez mais vantajoso.
Como ficam os artistas?
A pressão por estar sempre a produzir coisas novas afeta os artistas. Segundo Luís Couto, os com quem conversa costumam sempre dizer: “Tenho que fazer vários lançamentos para entrar numa playlist, só estarei em uma se jogar o jogo das plataformas”. Nas falas, certa ansiedade fica aparente. “Jogar o jogo das plataformas” tem se mostrado cansativo e, conforme comenta o próprio músico, pode prejudicar a composição de um álbum.
Segundo ele, “o artista, às vezes, precisa não lançar nada por um período de tempo”. Afinal, a composição de uma obra, com várias faixas integradas e coesas, carece de tempo. A necessidade de novidade constante, junto à ansiedade, dificulta o processo criativo. Juliano Alvarenga, no entanto, lembra de outro lado. Para ele, é possível andar junto às estratégias e, ao mesmo tempo, experimentar várias formas de trabalhar com os singles. Eles podem “entregar” o disco aos poucos, ou, juntos, construir uma identidade artística, sem nem mesmo estarem ainda unidos. Enfim, carregam, em si, várias possibilidades interessantes.
Os dois artistas, porém, lamentam algo em comum. As pessoas não mais escutam álbuns como antigamente – o que, para um músico, é algo bem dolorido, pois os discos são formatos trabalhosos, que, normalmente, necessitam de bastante cuidado na concepção. Mas, enfim, cada época tem suas dificuldades. Se, antes, lançar uma música era uma batalha muito maior, hoje, o desafio está na possibilidade de lançar muitas, e com facilidade.
Arianne Ruas é estudante de jornalismo na UFMG. Fascinada pela comunicação pelas palavras e pelas melodias. No YouTube, dedica-se a sua outra paixão além do jornalismo: a música. Participou do 1º Laboratório Culturadoria de Jornalismo e Crítica Cultural: Olhares e Processos, de maio a junho de 2021.
