Conheça Dolores Orange, artista pernambucana radicada em Belo Horizonte
Por Helena Tomaz | Assistente de Conteúdo
Há mais de dez anos, Dolores Orange trocava as cores vibrantes proporcionadas pelo sol e pelo mar de Recife pelo cinza da chuva londrina. A oportunidade, no entanto, abriu portas para que novas possibilidades de referências e inspirações surgissem.
Anos depois, já tendo trocado o cinza do clima de Londres pelos tons terrosos das serras mineiras, Dolores fez outra mudança: dessa vez, ela deixou a escola em que trabalhava como professora de literatura e língua portuguesa para se dedicar às artes visuais. Assim, com filmes analógicos e giz pastel, ela rapidamente ganhou espaço na cena belo-horizontina. Em entrevista ao Culturadoria, Dolores Orange contou mais sobre os processos de reinvenção que passaram pelo seu caminho.
Recentemente, tive a oportunidade de conversar com a Efe Godoy, e, na ocasião, ela relatou que sempre esteve ligada ao universo das artes visuais. Assim, desde cedo, já estava claro que iria seguir este caminho. No seu caso, suponho que não tenha sido exatamente assim, visto que é graduada em letras e, ainda, por ter trabalhado como professora antes de se dedicar mais às artes visuais. Poderia descrever a sua trajetória com a arte?
Na verdade, sempre fui uma pessoa ligada às artes, mas eu achava que isso era um hobby. Por exemplo: quando eu fiz intercâmbio, durante a graduação, tinha muito pouco tempo livre. Eu trabalhava como garçonete e, em função de estudar letras, tinha que ler muito, toda semana. Mas toda vez que tinha cinco minutos de tempo livre, acabava indo visitar museus. Depois, quando já tinha saído da universidade, morei em Amsterdam por três meses. Lá, enquanto escrevia meu projeto para o mestrado, acabei fazendo uma carteirinha de museus. No caso, a pessoa paga um valor e pode entrar em todos os museus da cidade, o tanto que quisesse. Então, eu ficava enfurnada neles.
Estou lembrando isso para dizer que eu sempre gostei muito, mas achava que não era para mim. E pensava que não era para mim porque via o artista com uma aura sagrada. Algo do tipo: “Nossa, artistas [são] santos, lindos, perfeitos”. Mentira, são todos problemáticos, porém [fazem] belíssimos trabalhos [risos]. Eu achava, portanto, que não era para mim, porque todos eles eram deuses. Só que fui fazer letras, literatura – e acho que foi um caminho muito importante, porque a literatura é formadora de quem eu sou, sempre foi.
–
E quando eu tinha 19 anos de idade [antes, portanto, do já citado intercâmbio], fui assistente do Francisco Brennand (1927-2019), um artista muito importante. Assim, vivia no atelier dele. E ele me dava lápis de cor, papel… Me deu muitos livros de artistas importantes e também de fotógrafos. Me presenteou com o livro do Pierre Reverdy, do Gauguin, do Iberê Camargo, de muita gente! Basicamente, fiz a minha biblioteca! Portanto, esse período foi super importante na minha formação. E eu era uma jovem! A minha convivência com ele durou quatro anos, então, eu tive esse período de formação muito importante, antes de ir para a Inglaterra. Quando eu chego na Inglaterra, já formada por essa convivência com o Brennand, fico enfurnada nos museus.
De lá [da Europa], vim direto para Belo Horizonte, fiz meu mestrado na [Escola de] Letras. Como precisava de um emprego, fui trabalhar como professora. E fui muito feliz lá, por alguns anos. Até que eu comecei a entender que amava dar aula, mas não era o suficiente para a minha felicidade. E, aí, iz uma prova de ingresso para a Guignard. Passei e comecei, muito devagar, porque, como dava aula, não tinha tempo de fazer as disciplinas: fazia uma, duas… Mas, de qualquer forma, isso foi apurando o meu senso estético, a sensação de que eu poderia trabalhar com arte. Só que, inclusive, eu entrei achando que o meu rolê era só a fotografia.
Quando foi em 2020, veio a pandemia, que foi uma loucura para os professores – com certeza, essa foi uma das profissões que mais sofreram no período. Claro, para os meninos também foi muito sofrido assistir a aulas online, mas, para o professor, que tinha que entender tudo, criar um mecanismo de ensinar pela internet, usar os recursos online, uma série de planilha burocráticas para preencher… Nossa! Aquilo foi muito estressante. E, aí, eu dei uma adoecida emocional.
–
Então, eu comecei a desenhar com o pastel. Mesmo porque, não dava para fotografar. Porque eu gosto muito de fazer retrato, e não tinha como, na época. E, aí, comecei a pintar com giz pastel. E foi super legal, porque fui encontrando o pastel, encontrando o desenho. Eu achava que não sabia desenhar – a gente tem uma ideia muito errada, muito convencional, do que é saber desenhar. Na verdade, a gente tende a achar que saber desenhar é saber representar as coisas tal como a gente vê. E tem uma noção muito mais ampla do que é o desenho e eu fui entendendo isso.
Isso acabou resultando no meu primeiro trabalho, chamado “Os dias estão todos ocupados”, que foi quando eu comecei a desenhar. Eu digo que a gente desenha, desenha, desenha para encontrar um desenho. Tem muito mais desenho feio do que bonito, mas a ideia é fazer vários para achar um. A minha relação com o desenho é assim. E eu colocava, no título do desenho, o dia da pandemia. Assim, no dia 209 [do isolamento], por exemplo, eu fiz um desenho, que foi batizado de “Dia 209”.
E, enquanto isso, você ainda estava na Guignard?
Eu ainda estou na Guignard! Não vou me formar nunca! [Risos].
Então, tem a presença da literatura, dos desenhos e da fotografia na sua vida. Como essas três expressões artísticas se relacionam para você, na sua vida, na sua mente, na sua produção?
A literatura é o ponto de partida, no sentido de que ela é o que me orienta. A literatura me fez pensar sobre o mundo, sobre as pessoas, sobre as minhas relações. Ela ajuda a me organizar internamente, sem ela, seria muito sofrido. A literatura tem essa função de organizar o que eu sinto.
Na fotografia, eu gosto de fazer retrato, e eu acho que é o lugar no qual, conceitualmente, meu trabalho tem muita força. Eu vejo que tanto a pintura quanto o retrato se relacionam na composição, porque, para mim, é muito interessante pensar a cor na hora do retrato. Se você for no meu feed e rolar a barra, vai ver que tem fotos em preto e branco – porque acabei descobrindo que gosto -, mas as fotos mais poderosas são as coloridas. Tem uma relação de cor forte e presente. As minhas fotos são quentes, não são frias. Elas não tendem a ser neutras, eu busco vibração nas imagens. Acho que é assim que elas se relacionam.
Li um post no seu Instagram em que você fala: “A referência para o uso das cores vem do Nordeste, em especial, da minha cidade de origem, Olinda. Sinto que há um desejo de alcançar uma vibração de cor possível em uma cidade próxima à linha do Equador. Como Pernambuco e os outros lugares pelos quais você passou influenciam o seu trabalho?
Essa formulação que eu escrevi é recente. Eu não entendia isso até ir a Recife, agora, em junho. Eu já vinha pensando sobre isso, mas, em junho, foi mais forte. Em Recife não tem muita nuance em relação à cor e à temperatura. O ano é basicamente todo quente, a cor da luz basicamente não muda.
Aqui, em Minas Gerais, uma das primeiras coisas que eu amei – e, como fotógrafa, eu penso muito sobre luz e sobre cor – foi o fato de a luz mudar. Existe uma luz em maio, junho e julho, que é outra em janeiro! E outra coisa que me fascinou quando cheguei é que o sol se põe em um lugar em janeiro, mas, em julho, em outro!
.
Então, a primeira coisa é isso, tem uma diferença na luz, que em Recife muda, e, aqui, não. E, por não mudar, as cores são sempre muito fortes e muito vibrantes. Mas tem uma outra coisa também: é que as pessoas lá gostam de colocar cor.
Se eu fizer um desafio com você, no qual você vai andar por Recife e Olinda, você vai ver uma coisa bem comum de cidades litorâneas nordestinas. Claro, nelas, muitas vezes as coisas têm um aspecto de deterioradas, por causa da umidade muito forte. Mas, se não estiverem assim, vão estar pintadas. E não pintados de marrom. Nem de bege. Nem de branco. Vão estar pintadas de rosa, azul, verde, amarelo, entendeu? Se eu dissesse para você andar por 20 minutos pela cidade e contar quais são as casas coloridas e quais foram as cores usadas, e se eu fizesse isso aqui, em Minas Gerais, você ia ver que só tem marrom. Isso me dá angústia! Tudo bem, tem as montanhas, eu entendo. Mas por que não fazer algo diferente?
Estou falando isso tudo para dizer que, quando eu fui em Recife, uma coisa que eu já vinha pensando há algum tempo, se concretizou. É que meu trabalho não é mineiro, embora eu esteja aqui há dez anos. Já é muito tempo de mineiridade na minha vida, mas, na verdade, o meu trabalho é bem pernambucano.
E você chegou a um estilo próprio muito marcante de pintura. Como foi o processo para chegar até ele?
Uma vez, eu estava conversando, já não lembro mais com quem, que todo mundo fala que comecei faz pouco tempo, mas eu não sinto assim. A minha expressividade – quando eu faço um desenho e ele tem a minha cara – veio rápido, quando a gente pensa em tempo cronológico, mas eu acho que houve uma gestação maior.
É quase como o trabalho de um professor. Nem tudo aquilo que o professor ensina para o menino no 9º ano, o menino percebe ali. Às vezes, o menino só percebe ao chegar na universidade. Esse é o processo, entendesse? Desde a minha convivência com o Brennand, o processo de ficar enfiada nos museus, de sempre ler, de ter uma formação, é isso. É como se eu tivesse estudado muito e tivesse chegado a hora da prova prática.
Seus trabalhos tinham um presente quase constante do giz pastel. Agora você tem usado outros materiais, também. Por que? Como tem sido essa experiência?
Quando eu comecei com o pastel, o Thi [Thiago Panini, marido de Dolores] havia perdido o pai dele, durante a [pandemia de] covid. E a gente foi viver com a mãe dele, para ela não se sentir tão só. Só que não dava para pintar na casa dela, que é super organizada. Acontece que o pastel não suja tanto, então, como fiquei um tempo sem ateliê, passei a usar o pastel, porque era mais fácil de transportar e porque não sujava tanto.
Em 2022 foi quando comecei o meu trabalho com óleo. Voltamos para Belo Horizonte, nos mudamos para esse [novo] apartamento, fiquei uns seis meses pintando com tinta a óleo, só que eu adoeci. Ano passado – e esse ano também, porque foi nesse ano que eu terminei o tratamento -, eu tive câncer. Então, a minha vida paralisou totalmente: eu fiz alguns desenhos, algumas pinturas, mas tudo muito mais devagar, você pode imaginar.
O que eu quero dizer com isso é que meu estudo com o pastel foi muito intensificado porque eu não tinha ateliê. Somente quando voltei a ter ateliê é que eu voltei a pintar com tinta. Eu já queria fazer esse movimento de pintar com tinta a óleo, porque acho bonito. Com a tinta a óleo, você pode fazer camadas grossas, texturas. Pode brilhar, pode ficar opaco. Eu gosto da tinta a óleo e gosto do pastel, porque existe uma expressão nos materiais. O gesto de quem desenha ou de quem pinta fica marcado, não fica chapado. Eu não pinto com tinta acrílica porque acho que “chapa” demais, não tem textura, não tem gesto. E por isso essa transição do pastel para a tinta a óleo.
Você falou que adoeceu, que seu ritmo diminuiu. Como tem sido voltar, agora?
Eu literalmente acabei de voltar! Assim que eu acabei a químio e a radioterapia, eu fui para a cirurgia. Da cirurgia, foi um mês para me recuperar, para eu voltar a andar e tudo mais. Depois, mais um mês, porque você fica desorientada. E é muito curioso, porque eu fiquei mais deprimida depois disso tudo do que durante. O que, na verdade, acho que foi um comportamento muito inteligente do meu emocional e do meu corpo, porque me mantive mais forte durante o tratamento do que assim que ele acabou. Quando acabou, dei uma baqueada emocional grande.
Aí fui para Recife, voltei, e, em julho, fiz uma viagem longa, de 25 dias, para ir ver a montanha. Porque eu queria muito ver uma montanha muito grande, era esse o meu plano. É que a montanha foi uma forma de conexão espiritual minha durante o tratamento. No intervalo entre o fim do tratamento e essa viagem, eu fiz essas pinturas da CasaCor. Elas se chamam “A paciência” e “A coragem”. São desse momento meu de retorno real. E como eu me sinto de voltar? Eu só quero fazer coisa grande! [Risos]. Eu estou nesse momento [de trabalho] grande e muito colorido.
Então você fez as pinturas da CasaCor especialmente para esse projeto, para esse cômodo. Como surgiu o convite? Como foi pensar o processo?
O convite surgiu das arquitetas do projeto. São três, das quais duas já tinham obras minhas. Assim, elas já conheciam o meu trabalho e curtiam. E quando elas pensaram na casa de banho, já tinham pensado em uma coisa colorida. E aí, em quem elas pensaram? Em mim!
E aí, pensaram em todos os detalhes, na disposição das coisas e em todos os objetos. Mas todas as cores, fui eu que pensei. E foram 12! É um banheiro muito forte – e que não é para qualquer um. Talvez tenha mais gente que gosta do que gente que não gosta do banheiro, mas ótimo, porque, na minha cabeça, vira um divisor de águas: as pessoas que gostam são mais ousadas e mais corajosas, e as outras são pessoas mais neutras.