
Criaturas da Mente: o encontro entre ciência e saberes ancestrais
Documentário de Marcelo Gomes explora os sonhos sob a ótica do neurocientista Sidarta Ribeiro
Cena do filme Criaturas da Mente. Foto: Sylara Silverio/Divulgação
Documentário de Marcelo Gomes explora os sonhos sob a ótica do neurocientista Sidarta Ribeiro
Cena do filme Criaturas da Mente. Foto: Sylara Silverio/Divulgação
“Criaturas da Mente”, nova investida de Marcelo Gomes, acompanha a jornada do neurocientista brasileiro Sidarta Ribeiro para, como bem aponta o material de divulgação do filme, “melhor entender o universo dos sonhos e do inconsciente”. Para tal, o documentário inova ao justapor o conhecimento científico aos saberes ancestrais. Ou seja, a proposta é, nas palavras do citado material, “transcender o tradicional eurocentrismo”.
Portanto, além de Sidarta (professor titular e um dos fundadores do Instituto do Cérebro da UFRN, e pesquisador do CEE-Fiocruz), o espectador vai se deparar com o conhecimento de convidados como Mãe Beth de Oxum, Mãe Lu e Ailton Krenak, entre outros não menos importantes. Reconhecidos detentores de saberes que se somam para refletir sobre o papel dos sonhos “na construção de novas formas de existência e no resgate de tradições há muito negligenciadas”.
Para perscrutar mais , o Culturadoria conversou com Marcelo Gomes – que, você sabe, traz, em sua “ficha corrida”, filmes como “Cinema, Aspirinas e Urubus” ou “Estou me Guardando para Quando o Carnaval Chegar”, entre outros não menos importantes.
Na entrevista, ele confirmou que o embrião do filme se deu a partir da constatação, ainda no período inicial da pandemia da Covid-19, de que não estava mais sonhando (ou, ao menos, de que não se recordava dos sonhos). “Olha, antes da pandemia, eu sonhava muito! Às vezes, com cenas que eu inclusive usava em meus filmes. Situações das personagens que eu trabalhava. Na verdade, eu tinha uma profusão de sonhos relativamente alta. E, quando estava em processo de filmagem, você sempre sonha com as personagens e você faz até decupagem de cenas. Afinal de contas, acho que a arte que mais se aproxima do sonho é o cinema”, pontua o diretor pernambucano, hoje com 61 anos.
Marcelo Gomes elucubra: “Você entra numa sala escura, a luz se acende, você vê personagens que não existem. Eles não têm carne e osso, são imagens que saem de um lugar para o outro sem você ver o percurso, que podem ir para um momento ou outro da história. E isso parece um sonho! A relação é muito parecida. E eu tinha uma relação muito boa com meu sonho. Mas, aí, veio a pandemia”. Um período em que a humanidade inegavelmente ficou em suspenso. E, claro, muita coisa mudou.
“Eu acho que a pandemia ofereceu um tempo necessário para a gente refletir sobre nós mesmos. Para a gente interiorizar certas questões. Por isso, era uma situação muito excepcional. Muito difícil, dura. Por isso muita gente perdeu um ano, outras ficaram dormindo demais. Algumas ficaram tendo pesadelos, outras sonhando demais… E outras não sonhavam. Ou, ao menos, não lembravam mais dos sonhos, assim como eu. Veja, eu sempre tive uma relação com os sonhos muito, muito tranquila. Até chegar esse momento, que, na verdade, é uma contradição. A pessoa que trabalha com imagens, não sonhar”.
Foi quando Marcelo Gomes se juntou à roteirista Letícia Simões para as conversas iniciais que desaguaram em “Criaturas da Mente”. “A gente começou a discutir muito e chegamos até Sidarta Ribeiro, a pesquisa dele sobre os sonhos, Sidarta como uma grande referência mundial sobre a questão do sonhar. E, a partir daí, realizamos uma grande conversa com ele, além de muito tempo de pesquisa. Depois, vieram as filmagens e, assim, iniciamos o processo”.
A incorporação de Sidarta ao projeto foi, pois, praticamente orgânica. “Afinal, se você quer refletir sobre sonhos, quem seria a pessoa interessante no Brasil a falar (sobre o tema)? Sidarta é o maior pesquisador dessa área. Eu já havia tido a oportunidade de conhecê-lo. Lá, em Natal, eu conheci o Instituto do Cérebro como lugar de referência na área de sonhos – então, nada melhor do que convidá-lo. E ele foi muito aberto ao projeto, conhecia o meu cinema, admirava as nossas ideias. Assim, foi uma incorporação muito tranquila”, atesta Marcelo.
Confira, a seguir, outros trechos da entrevista, destacados por tópicos.
Marcelo Gomes revela que as filmagens começaram ainda sob o governo anterior, que, diz, “estava perseguindo a ciência e o cinema”. Então, essa perseguição ao Sidarta e a nós, do cinema, estava no filme. Depois a gente abandonou isso e mergulhou no sonho. Mas, além do sonho, todos esses caminhos pelos quais, de uma forma ou de outra, a gente acessa o inconsciente, estágios, estados alterados da consciência, onde você vai para o inconsciente, e aí tem o transe, a psicodelia e o sonho”. Esses três nortes, portanto, foram as principais diretrizes. E, assim, Marcelo, Letícia e equipe decidiram entrevistar cientistas, pesquisadores. Mas não só. “Também pessoas que têm um conhecimento ancestral. Afinal de contas, as raízes indígenas e africanas foram fundamentais para construir a nossa nação”, salienta o diretor.
Alicerce que, prossegue Marcelo Gomes, foram por muito tempo relegados. “Ocorre que a gente queria reinventar esse país. Como diz o Sidarta, aldeiar e aquilombar o país. Então, a gente trouxe o conhecimento indígena sobre os sonhos, sobre o estágio psicodélico, por meio do Ailton Krenak. Da mesma forma, Mãe Beth de Oxum e Mãe Lu, duas Mães de Santo muito importantes no candomblé lá de Pernambuco. E falar assim como falam os cientistas”. Ou seja, Marcelo fala de construir um diálogo no qual os saberes – ciência e conhecimento ancestral – estão no mesmo patamar. “E esse diálogo foi muito maravilhoso, como vocês viram no filme. Momentos lindos, nos quais os cientistas e Mãe Beth, Mãe Lu ou Krenak estão dizendo as mesmas coisas, mas cada um com as suas palavras, com a sua forma de ver essas questões”.
O diretor se lembra de um momento em que a equipe foi entrevistar a Mãe Beth, sendo que, antes, Sidarta havia conversado com a equipe sobre a teoria das criaturas da mente, que, lembra Marcelo, vem do mundo científico. “E aí, conversando com a Mãe Beth, ela diz que ‘tem gente dentro da gente’, ou seja, exatamente essas criaturas da mente. Portanto, nesse momento, a Mãe Beth faz uma ponte entre o conhecimento dela e o conhecimento do Sidarta. Duas pessoas, com seus conhecimentos próprios, chegando a um denominador comum de pensamento. Isso foi muito bonito”.
Outro momento que Marcelo Gomes cita também envolve Mãe Beth. “Ela diz: ‘A gente tem que ter sonhos, senão, como é que a gente vai ter recado?’ E aí vem o professor e psicanalista junguiano Waldemar Magaldi, que também está no filme, que fala que o sonho é pedagógico, orientador e premonitor também, que nos ajuda para a vida. E aí, do mesmo modo, está uma intérprete falando: ‘Tem que sonhar, porque, a partir dos sonhos, vêm os sinais'”.
“Criaturas da Mente” é uma produção de João Moreira Salles e Maria Carlota Bruno, da VideoFilmes, realizada em coprodução com Globo Filmes e GloboNews, em associação com a Carnaval Filmes. A trilha sonora original é do duo mineiro O Grivo.
Publicado por Patrícia Cassese
Publicado em 19/05/25