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Literatura

“Vera”, romance de José Falero, acompanha jornada de empregada doméstica nos anos 1990

Novo livro do escritor, lançado pela Todavia, registra um Brasil que sobrevive apesar de profundo abismo social
O escritor José Falero. Foto: Josemar Afrovulto

O escritor José Falero. Foto: Josemar Afrovulto

Vera é uma trabalhadora doméstica na Porto Alegre da década de 1990. Moradora de uma comunidade periferica abandonada pelo poder público, a mulher enfrenta, diariamente, um longo caminho de casa até o trabalho. Um caminho que se divide entre uma longa caminhada e um ônibus lotado, já que os patrões, moradores de um prédio de classe média num bairro distante daquele onde ela vive, oferecem apenas um vale-transporte diário para a trabalhadora. Entre o ir e vir do trabalho e a vida com o filho, a mãe, as irmãs e diferentes outros personagens que orbitam sua existência, Vera segue em frente, na esperança de tempos melhores – tempos de “barras inteiras”, ela nos diz. “Vera” é o novo romance de José Falero, publicado pela Todavia Livros.

Crônicas de um Brasil de ontem (que poderia ser de hoje)

José Falero é um romancista de mão cheia. Dono de uma escrita que tem ritmo e gingado. Um estilo que caminha entre o peso da denúncia e a leveza de um texto fluido e de oralidade marcante. Os capítulos de “Vera” surgem, por vezes, como breves crônicas. Tem um bom humor pungente, num retrato do Brasil de ontem que poderia muito bem ser um registro do hoje. Afinal, quantos bairros e comunidades periféricas seguem abandonados pelo poder público, recebendo certa atenção apenas de quatro em quatro anos, numa “coincidência” nada inesperada com períodos de campanhas eleitorais? Quantos trabalhadores e trabalhadoras seguem enfrentando jornadas exaustivas indo e voltando do trabalho num transporte público deficiente?

“‘Insuficiência’ é uma palavra com cujo significado os trabalhadores mundo afora costumam estar bastante familiarizados, e Vera não era uma exceção. (…) Em virtude disso, os restos de fadiga iam se acumulando em cada uma das células do seu corpo ao longo da semana, de modo que às sextas-feiras nao lhe restava energia sequer para pensar.” 

Protagonismo feminino

São muitas as mulheres arrimo de família em “Vera”, outro retrato tão preciso da realidade brasileira. São mulheres que aprenderam a “sepultar a vontades”, frente ao emprego ou frente às agruras de uma vida domiciliar que também se apresenta como um ininterrupta e exaustiva jornada de trabalho, sejam mães solteiras ou mulheres casadas com homens completamente inúteis frente às demandas básicas de uma vida doméstica compartilhada. 

Capa do livro Vera, de José Falero. Foto: Editora Todavia
Capa do livro Vera, de José Falero. Foto: Editora Todavia

José Falero faz aqui uma leitura da masculinidade ostensiva e tóxica, em diferentes níveis, da adolescência à vida adulta, a partir dos personagens masculinos do romance. Seja num discurso frente ao feminino que, mais do que aparentemente expor um desejo pelo sexo oposto, parece registrar um profundo ódio pelas mulheres, ou no ato físico da violência doméstica. 

Se lida com a brutalidade de um cotidiano opressivo, Falero e suas personagens não abandonam a esperança e o lirismo. Dois dos momentos mais emocionantes da narrativa se desenrolam dentro de um circo, espaço privilegiado para o desconhecido, para o sonho e para a surpresa. “— O que é respeitável público?” (…) — Ele tá querendo dizer que a gente merece respeito”. 

Dores e delícias

Sabe aquelas histórias que dizem de personagens muito específicos, com suas dores e delícias, mas, em igual medida, ampliam o horizonte para dizer de toda uma época, de toda uma comunidade ou, ainda mais, de toda uma parcela da sociedade e de um país? “Vera” é um desses exemplares tão especiais. Ao contar a história de Vera, José Falero constrói uma narrativa que é puro suco do Brasil. Do Brasil de ontem, de hoje e, pelo andar da carruagem, de amanhã. Um Brasil que sobrevive, apesar de todas as desigualdades que aprofundam um abismo social que, muitas vezes, parece impossível de ultrapassar. Um Brasil que sobrevive, mas que deseja superar este “sobre-viver” que busca outro verbo, menor, mas muito mais potente: viver.

Encontre “Vera” aqui:

   

Gabriel Pinheiro é jornalista e crítico de literatura. Escreve aqui no Culturadoria e também em seu Instagram: @tgpgabriel (https://www.instagram.com/tgpgabriel)

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