Montagem de “O Toró”, que entra em cartaz no Teatro Feluma, celebra os 30 anos de trajetória da Trupe de Teatro e Pesquisa
Patrícia Cassese | Editora Assistente
Criada há exatos 30 anos, a Trupe de Teatro e Pesquisa já levou ao palco várias adaptações de clássicos da literatura e da dramaturgia, de autores como Molière ou Maquiavel. “No entanto, constatamos que nunca havíamos montado um texto de William Shakespeare – e que seria interessante que isso acontecesse agora”, pontua o integrante Yuri Simon. A percepção dos integrantes gerou todo um processo que agora culmina na estreia, nesta sexta-feira, dia 13 de outubro, de “O Toró”, espetáculo baseado na obra “A Tempestade” (The Tempest), do bardo inglês. A montagem ocupa o palco do Teatro Feluma até o próximo dia 22.
Décima montagem da companhia, “O Toró” entra em cena com o objetivo declarado de “aproximar as entidades fantásticas da natureza, presentes na obra de Shakespeare, da cultura e do imaginário do sertão brasileiro, também povoado por lendas com seres mágicos”. Neste sentido, veio a opção pela tradução direta do texto original, feita “a muitas mãos”, como afiança o material enviado à imprensa. Mas que ninguém enxergue nesta opção uma iniciativa destituída de certo calço: na equipe, haviam professores, escritores e pesquisadores de teatro, bem como artistas com domínio de aspectos de várias áreas do conhecimento.
Mineirês
“Trazer o texto original para o mineirês surge do entendimento de muitos pesquisadores de que Shakespeare foi muito popular no tempo dele”, explica Yuri. Assim, falava diretamente às pessoas que frequentavam o teatro – o atual Globe Theatre. “Um povo simples e humilde”. O diretor de “O Toró” confesa que as traduções que encontraram pareceram à equipe muito herméticas, “com uma linguagem erudita e intelectual”. “Tínhamos que trazer esse texto para o linguajar popular, para conseguir atingir os espectadores de maneira leve e divertida. Muitas das expressões idiomáticas do inglês não tinham sentido para a cultura brasileira”, argumenta.
Além do acento mineiro, a adaptação conta com algumas liberdades poéticas. Assim, em vez de um duque, o Próspero de “O Toró” é um coronel. E no lugar de uma ilha no meio do oceano, a ação se passa às margens do Rio São Francisco, no agreste de Minas. No palco, Próspero é vivido por Alexandre Toledo, que falou ao Culturadoria sobre o papel. “Próspero é a personagem central da peça ‘A Tempestade’. Tudo gira em torno da história dele, do plano de vingança ou de justiça (que acalenta). Originalmente, é um duque que foi destronado pelo irmão e enviado para o exílio. Mas também era um estudioso”, pondera o ator.
“Coroné” Próspero
Alexandre Toledo lembra que a história foi escrita no começo do século XVII, sendo considerado o último texto de Shakespeare. “Nessa época, ainda prevalecia a imagem do intelectual renascentista. Assim, do homem que se interessava tanto pelas ciências naturais, quanto pelo ocultismo. Próspero é um homem assim. Por ser estudioso das coisas ocultas, ele as manipula para alcançar os objetivos, provocando, assim, a tempestade que joga os inimigos na ilha onde se encontra exilado”. Logo, Toledo partiu dessas imagens para criar a personagem que interpreta em “O Toró”.
“Como a nossa proposta foi localizar a história em Minas, no vale do São Francisco, Próspero deixou de ser duque, nobre europeu da Renascença, e passou a ser um grande fazendeiro”. Logo, acrescenta Alexandre, um ‘coroné‘ desses que habitam o nosso imaginário político e social. “Porém, continuou sendo um estudioso. Assim, exilado numa margem perdida do rio, manipula as forças da natureza para provocar o ‘Toró’”.
Moldado pelo sol do sertão
Neste sentido, Alexandre Toledo narra que se viu impelido a abandonar a abordagem mais clássica que estava imprimindo à personagem para trazer a imagem de um homem mais matuto, mais rude. “Inteligente, mas moldado também pelo sol do sertão, com a rudeza da natureza na alma. É uma personagem diferente de tudo o que já fiz no teatro até agora. Tem também a carga de ser um homem mais velho, já descendo a serra”, acrescenta ele, que já interpretou personagens assim no espetáculo “Adivinhe quem vem para rezar”, que estreou ano passado. “Mas neste Próspero de ‘O Toró’, procuro trazer uma abordagem diferente”.
Miranda, a filha
O Culturadoria também convocou a atriz Sidnéia Simões, que, em “O Toró”, interpreta Miranda, a filha de Próspero, a falar sobre o processo de construção da personagem. “Veja, quem não tem, bem lá no fundo, uma ponta de romantismo e um sonho de encontrar um amor perfeito ou quase perfeito? (risos) Assim, a personagem Miranda mexe com esse imaginário. E como se trata de uma comédia, brinca com essa ideia, trazendo à tona um ‘amor exagerado’, como nos fala Cazuza”, compara ela.
Sidnéia prossegue: “Interpretar essa personagem e, no meu caso, na idade madura, está sendo uma experiência lúdica. O teatro nos traz a possibilidade de ‘ser’ ou ‘estar’ em personagens diferentes, quebrando padrões e os nossos vários preconceitos. Assim, posso tirar, de dentro de mim, a criança, a mocinha ou (tal qual) a senhora que habitam em mim. Logo, é uma experiência mágica mostrar essa versão sonhadora da jovem Miranda em ‘O Toró'”.
“Jeitim”
Primeiramente, para compor a personagem, Sidnéia buscou referência em imagens de jovens do interior. “E, como não poderia deixar de ser, enfatizando o nosso ‘jeitim’ de falar, os gestos, o corpo”. Ela pondera, ainda, que toda a equipe de “O Toró” está bem entrosada. “E isso tem nos proporcionado uma enorme alegria – e é justamente essa vibração que a gente quer levar para o público”.
Completam o elenco: Marcus Labatti, Jader Corrêa, Simone Caldas, Eder Reis, Alice Maria, Edu Costa, Roberto Polido, Elton Monteiro e Alex Zanonn. São atores e atrizes que em algum momento dessas três décadas da Trupe de Teatro e Pesquisa estiveram em trabalhos da companhia.
Clássico
Perguntado sobre a atemporalidade do texto, Yuri diz sempre acreditar que, quando um texto se torna clássico, é porque ainda tem o que dizer aos espectadores. “‘O Toró’, nossa tradução para ‘A Tempestade’, de Shakespeare, nos fala de amor, de compreensão, da necessidade do perdão e sobre os nossos arrependimento. Muitas vezes fazemos coisas que são repreensíveis por entendermos ser essa a única atitude que devemos tomar em determinado contexto. No entanto, uma luz de razão pode nos fazer entender que aquela talvez não tenha sido a melhor escolha”.
Cenários e que tais
Em tempo: na montagem de “O Toró”, Yuri também assina os cenários, que trazem projeções de ilustrações que remetem a Minas (paisagens, caricaturas, elementos simbólicos e religiosos). No quesito música, foram usadas sonoridades mineiras, como ritmos do Congado, da Folia de Reis, vozes de cantos populares e uma instrumentação pautada na percussão, no violão e no acordeon. Ademais, conduzidos por Fernando Chagas, os atores cantam e tocam, ao vivo. A iluminação é de Tainá Rosa, que, nela, faz referências ao calor do sertão, ao frio das chuvas e às tempestades. De acordo com a produção, nas cenas mágicas são utilizados recursos de moving-lights (luzes em movimento) e leds. Tal qual, uma textura de máquina de fumaça.
A maquiagem, a cargo de Alexandre Colla, é inspirada nas carrancas do vale do Rio São Francisco. Não menos importantes, os figurinos surgiram de uma proposta de Yuri a alunos da disciplina de Figurino da Escola de Design da UEMG, na qual leciona. Assim, eles assumiram o desafio de criar peças dentro de um viés sustentável, e sob a orientação do já citado Alexandre Colla. Como material, foram reutilizados acervos de figurino da Trupe de Teatro e da Cia da Farsa, além de acervos particulares de Colla e Simon e, ainda, de alguns atores.
Três décadas
Em três décadas de existência, a Trupe de Teatro e Pesquisa já arrebanhou dez prêmios, bem como outras tantas indicações pelas nove montagens (como assinalado, “O Toró” é a décima). Ao todo, mais de 40 artistas passaram pela companhia. “A Trupe é um coletivo de profissionais de teatro com formações distintas, que se reúnem quando têm interesse de realizar uma proposta de espetáculo específico”, conta Yuri Simon. Assim, todos também trabalham em outras companhias. “Mas alguns estão com a Trupe desde a origem. E a cada montagem, novos membros são convidados”.
Como dito, a Trupe basicamente se especializou na montagem de clássicos da dramaturgia adulta e infantil, “com linguagem estética contemporânea”. “‘O Toró’ é nossa décima montagem. É uma equipe de amigos que exaltam o prazer de trabalhar colaborativamente”, conclui Yuri.
Exemplo da tradução para o “mineirês” em “O Toró”
“Lembrando que o mineirês é uma construção de linguagem falada, e não escrita”, ressalva Yuri Simon.
Original Inglês:
Caliban
Hast thou not dropped from heaven?
Stephano
Out o’ th’ moon, I do assure thee. I was the man i’ th’ moon when time was.
Caliban
I have seen thee in her, and I do adore thee. My mistress showed me thee, and thy dog and thy bush.
Em uma das traduções encontrada pela produção de “O Toró”
Caliban
Você não caiu do céu?
Estefano
Da lua, posso lhe assegurar. Eu era o homem da lua Tempos atrás.
Caliban
Eu o vi por lá E lhe tenho adoração. Minha ama me mostrou Onde você estava, seu cão e seu feixe de lenha.
Tradução para o mineirês para “O Toró”
Caliban
Ocê não caiu do céu?
Estefano
Da lua, cê acredita? Eu era um homem de lua tempos atrás. Eu vivo sempre no mundo da lua…
Caliban
Sim… Eu vi ocê lá e te adoro. Minha mãe me mostrô on’cê tava, montado no seu cavalo.
Serviço
“O Toró”, adaptação da obra de William Shakespeare
Quando. 13 a 22 de outubro de 2023. Sexta a sábado, 20h, e domingos, às 19h
Onde. Teatro Feluma (Alameda Ezequiel Dias, 275, Centro)
Quando. Ingressos a R$ 40 ou R$ 20 (meia), na bilheteria ou pelo Sympla
Mais informações: perfil oficial do grupo no Instagram