O que um dia de trabalho de um empregado da construção civil tem em comum com a história de uma menina insatisfeita e que vive em função das redes sociais? À primeira vista pode não ter nada a ver, mas quando escreveu a música Desconstrução para o seu novo álbum, provavelmente Tiago Iorc se inspirou em Chico Buarque. Este segundo, por sua vez, é autor de Construção e um dos maiores nomes da música popular brasileira. Pensando nas características em comum de ambas as canções, nós separamos alguns aspectos para analisar cada uma delas, como o contexto social e político, a letra e o ritmo.
A nova voz da música brasileira ficou sumida durante pouco mais de um ano e ressurgiu como uma fênix neste 2019 com o disco Reconstrução. O trabalho emplacou várias músicas nas listas das mais tocadas. O CD também pode ser chamado de “filme”, pois é uma narrativa contínua que segue a linha do tempo dos clipes.
Por outro lado, a canção de Chico Buarque, Construção, também dá nome ao seu álbum de 1971 e fez parte de um momento marcante da história do Brasil: a Ditadura Militar. Mas vamos direto ao ponto? Vamos entender qual a relação entre Construção e Desconstrução.
Especificidade de cada uma das letras
Em primeiro lugar é importante falar da letra de cada canção. Chico Buarque compôs uma música que tem foco no trabalhador. Em resumo, é um operário da construção civil, que sai de casa todos os dias para cumprir a tarefa de trabalhar em obras. Sendo assim, é destacado um fatídico dia, no qual o personagem morre. É uma história simples, mas Chico Buarque, com toda a sua genialidade, escreveu a canção que foi considerada a melhor música brasileira de todos os tempos pela revista Rolling Stone.
A letra é dividida em alguns momentos. É como se fosse um passo a passo sobre o que aconteceu durante o dia do trabalhador. Ele saiu de casa, foi para o trabalho, parou para almoçar, voltou a trabalhar e sofreu um acidente. Existem diferentes teorias sobre a letra da música. Só para exemplificar, tem gente que fala que o deslocamento das palavras entre os versos é para dar um aspecto geral, ou seja, mostrar que o incidente pode acontecer em qualquer lugar, todos os dias.
Outra interpretação mostra que a música tem três formas diferentes de contar a mesma história e por aí vai. De acordo com Buarque, a ideia não era provocar essa ou aquela interpretação. Mas sim dividir a música em grandes blocos, como é feito em uma obra, construção.
Tiago Iorc
Por outro lado, a música de Tiago Iorc é dividida em quatros blocos de 10 versos cada. A narrativa é sobre uma menina que depende das redes sociais para sua autoafirmação. É tímida na “vida real”, mas se veste todas as vezes para aparecer nas redes sociais, se retoca e se mostra como uma pessoa que não é. Ao mesmo tempo, sofre de depressão e não é compreendida pelos pais. Assim como Chico Buarque, Thiago Iorc dá o mesmo fim para a personagem principal.
Além disso, há também os aspectos da montagem dos versos da música. É possível perceber que absolutamente toda última palavra de cada verso de Chico é proparoxítona. Ou seja, que a sílaba tônica é a antepenúltima da palavra. A atenção à última palavra de cada verso também está presente em Desconstrução. Tiago Iorc optou por deixar a tonicidade quase sempre na última sílaba de cada palavra.
Contexto social
Como dissemos, o rapaz Tiago Iorc sumiu em 2018 e ficou longe dos holofotes durante mais de um ano. Ele anunciou o distanciamento afirmando que precisava de tempo longe das redes sociais. Do nada, voltou com álbum gravado e clipe para todas as músicas. A primeira faixa do disco é justamente Desconstrução. Que fala sobre a efemeridade das redes sociais e sobre como as pessoas sempre querem garantir uma curtida.
No entanto, tal temática já esteve presente em outras produções do artista. O álbum Troco Likes, de 2015, por exemplo, conta com as canções Sol que faltava e Alexandria. A primeira faz um questionamento: quando foi a última vez que conseguimos sair sem ser notados, sem retoque e sem nos importar com a opinião alheia? Similarmente, Alexandria fala sobre o volume de conteúdo compartilhado online. Sempre tem “gente demais com tempo demais, falando demais, alto demais”. Assim sendo, Desconstrução é sobre o momento atual, sobre suicídio e sobre relações na internet.
Ao mesmo tempo, Construção de Chico Buarque também aborda uma realidade. A música foi composta durante a Ditadura Militar que ocorreu no Brasil entre 1964 e 1985. Chico Buarque estava exilado na Itália e ao voltar lançou o que foi considerado um dos trabalhos com mais carga crítica e conceitual da sua carreira. Como um todo o álbum Construção criticou a censura do governo, as condições individuais e de trabalho.
Ritmo
É possível fazer uma analogia do ritmo de Construção com o ritmo do dia de um trabalhador. Isso porque a canção começa lenta, vai ganhando força até chegar no seu ápice e desfecho. Como o ritmo é uma das características fundamentais da poesia, Chico aproveitou dos versos de doze sílabas. Isso causa aquele efeito de cadência que percebemos ao ouvir a música. Os versos de doze sílabas são os versos alexandrinos. Estão presente em poesias extremamente complexas na gramática e na fonética. No Brasil, o primeiro a usar o verso em larga escala foi Machado de Assis. Isso aconteceu no período do Romantismo.
Semelhantemente, a canção de Tiago Iorc vai crescendo ao longo da narrativa. O ouvinte fica cada vez mais envolvido com a história da menina, sentindo, até mesmo, a angústia da música.
O fim trágico
O desfecho de ambas as canções não é feliz. O trabalhador de Chico Buarque vivia dentro de um sistema e acabou morto em decorrência da atividade que exercia. A morte do homem não é construída desde o começo, como é o caso da canção de Tiago Iorc. Apenas na última estrofe de cada parte que a morte é relatada. Veja:
E tropeçou no céu como se fosse um bêbado
E flutuou no ar como se fosse um pássaro
E se acabou no chão feito um pacote flácido
Agonizou no meio do passeio público
Morreu na contramão, atrapalhando o tráfego
Agora veja como é Desconstrução:
Quando se viu pela primeira vez
Na tela escura de seu celular
Saiu de cena pra poder entrar
E aliviar a sua timidez
Vestiu um ego que não satisfez
Dramatizou o view da rotina
Como fosse dádiva divina
Queria só um pouco de atenção
Mas encontrou a própria solidão
Ela era só uma menina
Abrir os olhos não lhe satisfez
Entrou no escuro de seu celular
Correu pro espelho pra se maquiar
Pintou de dor a sua palidez
E confiou sua primeira vez
No rastro de um pai que não via
Nem a própria mãe compreendia
O passo tempo de prazeres vãos
Viu toda graça escapar das mãos
E voltou pra casa tão vazia
Amanheceu tão logo se desfez
Se abriu os olhos de um celular
Aliviou a tela ao entrar
Tirou de cena toda timidez
Alimentou as redes de nudez
Fantasiou o brio da rotina
Fez de sua pele sua sina
Se estilhaçou em cacos virtuais
Nas aparências todos tão iguais
Singularidades em ruinas
Entrou no escuro de sua palidez
Estilhaçou seu corpo celular
Saiu de cena pra se aliviar
Vestiu o drama uma última vez
Se liquidou em sua liquidez
Viralizou no cio da ruina
Ela era só uma menina
Ninguém notou a sua depressão
Seguiu o bando a deslizar a mão
Para assegurar uma curtida
Tiago Iorc vem aí
Em tempo, Tiago Iorc tem show marcado em BH mas não será exclusivamente do disco Reconstrução. Será o revival do formato acústico que fez o maior sucesso nos anos 1990. Vamos torcer para que Desconstrução esteja no repertório, mesmo que com arranjos diferentes. Ou seja, levemente desconstruída.
[O QUE] Tiago Iorc – Turnê Acústico MTV 2019 [QUANDO] 23 de novembro, 22h [ONDE] KM de Vantagens Hall – Av Nossa Senhora do Carmo, Savassi – BH – (31) 3209-8989 [QUANTO] A partir de R$ 60