O narrador de “Samarcanda”, romance histórico do libanês Amin Maalouf, dá início ao livro relembrando um acontecimento singular.
Por Gabriel Pinheiro | Colunista de Literatura
Na madrugada de 14 para 15 de abril de 1912, o Titanic afundou. Segundo o narrador, a mais ilustre das vítimas foi um livro. No caso, o exemplar original do “Rubaiyat”, volume com versos do persa Omar Khayyam. Poeta, cientista e astrônomo, foi uma das figuras-chave da cultura oriental em toda a história.
A partir daí, Amin Maalouf se debruça sobre a história da obra-prima de Omar Khayyam. Sendo assim, fabula acerca de processo de escrita, iniciado em 1072, e o fascínio gerado pelo “Rubaiyat” ao longo dos séculos. Khayyam é o protagonista da primeira metade do livro. A segunda tem como foco a busca obsessiva do acadêmico estadunidense Benjamin Omar Lesage pelos escritos do poeta persa. Isso na virada do século XIX para o XX. A tradução é de Marília Scalzo.
“Samarcanda” é lançado pela Editora Tabla, dedicada à publicação de livros referentes às culturas do Oriente Médio e do Norte da África
Os rubais de Omar Khayyam
Omar Khayyam começa a escrever rubais (uma forma poética em quatro versos) ao adentrar a cidade de Samarcanda, “a mais bela face que a Terra já mostrou ao Sol”. Ao presenciar ali, em uma feira ao ar livre, uma cena de violência, o jovem persa intervém, tornando-se ele próprio alvo da turba furiosa. Khayyam já era, então, conhecido por seus versos: não escritos e registrados em papel, mas declamados em voz alta. Versos sobre a beleza e o prazer da vida – um de seus temas primordiais era o vinho. Para a multidão, ele era um “filassuf” (filósofo), aquele que se interessa pelas ciências profanas, em detrimento da religião.
Ao ser entregue para o juiz da cidade – que descobre ser admirador – Omar recebe não uma punição. Ganha um livro em branco, com a promessa de que seus versos serão, a partir de então, registrados ali. Assim nasce o “Rubaiyat” (coleção de quartetos) de Khayyam. “Guarde esse livro. Cada vez que um verso tomar forma em sua mente, que se aproximar de seus lábios, procurando sair, reprima-o sem dó; em vez de recitá-lo, escreva-o nessa folhas, que guardarão o segredo.”
Narrativa povoada por personagens históricos
A narrativa de “Samarcanda” acompanha, então, a peregrinação de Omar Khayyam pelo Oriente Médio e pela Ásia Central. Enquanto registra versos, o poeta se encontra e se relaciona com diferentes personagens históricos. Ou seja, tem o fundador da Ordem de Assassinos (espécie de seita precursora do terrorismo), Hassan Sabbah, e o vizir do império turco-persa, Nizam Al-Mulk. A sabedoria dele o colocava como figura de proeminência em diferentes esferas políticas na região, apesar de seu pouco interesse pelo poder. Mas é na corte que ele conhece Djahane, dando início a uma paixão intensa e inesquecível. A personagem tem uma construção interessantíssima, de espírito livre e opiniões marcantes, a frente de seu tempo – sobretudo ao pensarmos na época e lugar onde a narrativa se insere.
Muitos séculos depois, encontramos o norte-americano Benjamin Omar Lesage. O rubais de Khayyam alcançam o imaginário do ocidente graças à tradução para o inglês de Edward Fitzgerald. Mas o manuscrito original do “Rubaiyat” é dado como desaparecido. Ao receber uma pista sobre o suposto paradeiro do livro, Lesage parte para o oriente. Assim, percorre caminhos com diversas interseções com aqueles trilhados por Omar Khayyam no passado. “Há anos, desde que soube de sua existência, vivi só para o livro, que me conduziu de aventura em aventura, seu mundo tornou-se o meu”.
Espelhamentos entre passado e presente
Separados por oito séculos, é muito interessante como a narrativa constrói espelhamentos entre as duas figuras e aqueles com os quais eles se encontram em seus próprios caminhos. Lesage também se vê inserido em ambientes de fortes agitações políticas, sendo testemunha de golpes e reviravoltas na busca pelo poder. Tendo uma importante carreira como jornalista, o autor Amin Maalouf tem um olhar dedicado para geopolítica do Oriente Médio. Deste modo, exp, expondo os conflitos de interesse internos e a forte influência externa de potências estrangeiras na região, como a Rússia e a Inglaterra, na passagem do século XIX para o XX.
Fábulas
Uma das muitas belezas de “Samarcanda” está no caráter fabulador de Amin Maalouf, onde fatos e personagens reais se relacionam com acontecimentos e sujeitos ficcionais. Ao trazer para a narrativa estas figuras históricas, o autor libanês dá vida e profundidade às trajetórias por meio da ficção. Se a realidade, muitas vezes, não dá conta de alcançar todos os mistérios que recobrem uma existência, cabe à ficção o poder extraordinário de alcançá-los. Mistérios, inclusive, cercam a própria existência de Omar Khayyam e de seus versos. Há a desconfiança de que muitos do rubais creditados à ele foram escritos por outros poetas. Inclusive pelo próprio tradutor para o inglês, Edward Fitzgerald – cujas traduções tornaram Khayyam um fenômeno no ocidente.
“Samarcanda” é uma das leituras mais encantadoras que realizei em tempos recentes. Com uma prosa fortemente poética, Amin Maalouf mergulha o leitor numa vertiginosa viagem que atravessa séculos. Está atento à cultura e à geopolítica do Oriente, em um olhar que foge da condescendência e do exotismo.
Se, no fim, o “Rubaiyat” mergulha em direção ao fundo do oceano atlântico a bordo do Titanic, “Samarcanda” mergulha fundo naquele leitor que tem a sorte de encontrar nas preciosas páginas.

Gabriel Pinheiro é jornalista e produtor cultural, sempre gasta metade do seu horário de almoço lendo um livro. Seu Instagram é @tgpgabriel (https://www.instagram.com/tgpgabriel/)