Lançamento da Intrínseca, autobiografia capta período de formação pessoal e artística de RuPaul, passando por momentos difíceis e reveladores de sua persona
Por Gabriel Pinheiro | Colunista de Literatura
“Todo mundo nasce nu, o resto é drag” é um dos mais conhecidos bordões de RuPaul Charles, a mais importante drag queen do showbiz norte-americano. O fenômeno contemporâneo da arte drag é, em grande parte, mérito do artista e seu RuPaul’s Drag Race. Reality show que, desde 2009, revela drag queens não apenas nos Estados Unidos, mas em todo o mundo – incluindo o Brasil. Em sua nova autobiografia, “Casa dos significados ocultos”, RuPaul faz um mergulho inédito em sua história pessoal. Para além da figura pública onipresente no imaginário midiático norte-americano nas últimas décadas. Entre as muitas confissões, anedotas e histórias resgatadas pelo artista, está a origem da frase do início deste texto, uma de suas marcas registradas. O livro é um lançamento da Intrínseca, com tradução de Helen Pandolfi.
Quem é RuPaul
Em “Casa dos significados ocultos” não avançamos até a explosão global de “RuPaul,s Drag Race” e o apogeu do artista. Ru define um período pré-determinado para compartilhar conosco: da infância, passando pela construção de sua figura pública até, enfim, sua entrada no showbiz. Apenas até o início do sucesso. Com o que coletamos nesta autobiografia, sobretudo em seu período de formação enquanto artista, identificamos muitos dos elementos que o transformaram, futuramente, em um dos mais conhecidos apresentadores de televisão em seu país.
“Como um homem negro afeminado que violava as normas da sociedade pelo simples fato de existir, fazer drag era uma forma de recuperar o poder que sempre me foi negado”.
Há um momento que se repete nos episódios finais de cada temporada de seu reality show em que RuPaul mostra para as competidoras remanescentes uma foto destas quando crianças e pergunta: O que o você de hoje diria para o você de ontem? De certa forma, é esse o gesto que o autor busca neste novo livro. Lidando abertamente com temas como a ausência paterna, a depressão materna, o abuso de drogas e álcool e os conflitos decorrentes da descoberta da própria sexualidade. RuPaul nos permite um vislumbre generoso de quem ele foi e de quem ele se tornou, colocando essas duas fases em diálogo.
Relações familiares
Um dos pontos de maior destaque do volume está na relação do autor com os pais. De certa forma, a drag de RuPaul é uma resposta tanto à mãe quanto ao pai. Sendo formada a partir da relação com essas duas figuras fundamentais. Com a mãe, ainda na infância, bastava uma toalha ou um cachecol e uma vassoura para que um jovem RuPaul se transformasse em Tina Turner ou Carol Burnett, arrancando, assim, risadas onde residiam, sobretudo, a raiva e o rancor. Era uma forma de se aproximar da mãe, expondo o afeto e o companheirismo que existia e resistia nesta relação, tentando afastar a mulher de uma infelicidade que parecia onipresente.
Sobre o pai, ele destaca a maneira como, em comparação com as irmãs, era sistematicamente deixado de lado. “Só prestou atenção em mim quando soube que existia a possibilidade de eu estar manchando a sua reputação, quando houve a possibilidade de eu envergonhá-lo por ser gay”, desabafa. Se o pai amava e bajulava as mulheres, RuPaul reflete: “Como seria se eu me tornasse a garota mais bonita de todas?”
Contracultura norte-americana
“Casa dos significados ocultos” é um mergulho tanto na trajetória pessoal de RuPaul quanto na própria história da contracultura norte-americana entre as décadas de 1970 e 1990. Passando pelos movimentos pelos direitos civis e diversos fenômenos político-culturais que marcaram aquela sociedade no período. O artista reage e se constrói em diálogo com essas transformações.
“O fato de haver uma relação entre o movimento pelos direitos civis e o nascimento daquela nova cena não me passava despercebido. O grito de luta pela igualdade racial, que começara em Atlanta, seria transmitido ali de outra forma: uma recusa em aceitar o status quo ou em concordar com os termos estabelecidos pela sociedade”.
Entre muitas anedotas e acontecimentos definidores de sua persona, Rupaul Charles constrói em “Casa dos significados ocultos” um texto que, mais do que apenas rememorar e registrar, busca inspirar aquele que o lê. Para quem o conhece a partir de RuPaul’s Drag Race, sabe o quanto o discurso motivador é uma de suas marcas registradas.
“O mundo está diferente; não sei mais qual é meu lugar nele e me sinto velho, cansado e com medo. Mas então, de pé no meio do quarto de hotel, eu me viro. Volto à casa dos significados ocultos mais uma vez. E procuro por algo diferente. Porque sei que, por trás desse medo, há amor”.
Encontre “Casa dos significados ocultos” aqui
Gabriel Pinheiro é jornalista e produtor cultural. Escreve sobre literatura aqui no Culturadoria e também em seu Instagram: @tgpgabriel (https://www.instagram.com/tgpgabriel)