Por Carol Braga
01/01/2021 às 18:47
No filme Retrato de uma Jovem em Chamas, vencedor do prêmio de melhor roteiro no Festival de Cannes em 2019, a pintora Marianne (Noémie Merlant) recebe uma missão um tanto quanto diferente. Ela precisa fazer um retrato de Héloïse (Adèle Haenel) baseado, apenas, nas próprias memórias. A jovem nobre que passa temporada em uma isolada casa de praia não posa. A razão? Protesto. A finalidade do quadro é ser enviado a um pretendente. Tudo isso no século XVIII.
Héloïse estressou vários pintores que se dedicaram à missão. O último recurso utilizado pela mãe, então, foi convidar uma mulher para assumir o posto. Uma raridade naquela época. Assim, em meio a uma possível amizade, a artista poderia trabalhar a partir dos registros guardados na lembrança.
Pois a memória também é o que conduz este texto. Mas, neste caso, não tem a ver com protesto e sim com uma espécie de mineração crítica. O que fica do filme é realmente aquilo que marca. Isso significa que este texto está sendo escrito cerca de três meses depois de ter assistido à produção dirigida por Céline Sciamma. E então, qual é a conclusão?
Retrato de uma Jovem em Chamas é um filme em que até os silêncios falam. E muito! Penso ser um daqueles casos em que a presença de uma mulher na direção faz diferença não apenas no modo como conta a história, mas em todos os detalhes. Céline tem um tempo muito particular para narrar cada fase do encontro entre Marianne e Héloïse. Não deixa de ser um jogo de sedução. Muitas pessoas podem até achar lento. Me pareceu ideal.
Como em geral acontece com os grandes filmes, todos os detalhes de Retrato de uma jovem em chamas têm algo a complementar na trama. A trilha sonora, por exemplo. Em muitos momentos ressalta-se o barulho de lareira queimando, fogueira, coisa do tipo. Há algo em um processo de incineração.
Outro elemento que chama a atenção: a direção de arte. Héloïse passa uma temporada isolada em uma casa de praia acompanhada apenas da mãe e de uma criada. O vazio do lugar – interno e externo – diz também sobre a solidão das protagonistas? Me pareceu que sim. Tem ainda a fotografia, sempre em diálogo com a direção de arte. No início, os tons da tela puxam para o marrom e o azul. O verde – da esperança? – entra a partir do momento em que há uma mudança importante no rumo da trama. É quando o roteiro surpreende e se faz merecedor do prêmio em Cannes.
Céline Sciamma é uma fã assumida do cinema do diretor sueco Ingmar Bergman (1918 – 2007). Assim como já havia feito em Tomboy (2011), a cineasta presta diversas homenagens ao ídolo. São flertes principalmente estéticos. Por exemplo, a cena em que as protagonistas observam o mar é exatamente igual a um trecho de Persona ou Quando duas mulheres pecam (1966).
No caso do filme de Bergman, duas mulheres (Bibi Andersson e Liv Ullmann) também ficam isoladas em uma casa de praia, tornam-se cúmplices. Assim como Retrato, Quando duas mulheres pecam (1966) também diz sobre solidão.
Comparativo feito pelo site Pinnlandempire
Uma das sequências mais geniais de Retrato de uma jovem em chamas é o primeiro encontro das duas. Héloïse corre em direção ao mar. Faz lembrar um trecho da peça Por Elise, de Grace Passô: “Sou forte, como um cavalo novo, com fogo nas patas, correndo em direção ao mar”.
Como é comum em muitos filmes sobre “amor proibido”, mais do que as palavras, são outras partes do corpo que falam. No caso delas, os olhos, a respiração, as mãos. Mérito de um bom trabalho de interpretação e direção de atores. Sendo assim, vale também ficar de olho no desenvolvimento das carreiras das atrizes Noémie Merlant e Adèle Haenel. Elas conseguiram passar uma angústia silenciosa o que contribui muito para o longa.
Quem quiser mais opiniões sobre o filme vale ouvir o podcast Plano Geral apresentado por Flávia Guerra e Thiago Stilavetti. Eu concordo com a opinião da Flávia: Retrato de uma jovem em chamas é um filme sobre o amor. Acrescento, porém, uma reflexão a isso. Quando será que as histórias de amor entre pessoas do mesmo sexo serão retratadas no cinema de maneira leve?
Por que sempre – ou na maioria das vezes – que esse tipo de romance é contado, há muita tensão, misturada com tesão. O proibido é gancho para suspense? A diferença é que em filmes dirigidos por homens, por exemplo, esse elemento é explorado sexualmente.
Embora avance inúmeras casinhas nesse quesito – que inclusive tem outros filmes com casais lésbicos no currículo como Water Lilies (2007) – Céline Sciamma ainda não consegue virar totalmente a página. Será pelo fato de ser um filme em outro contexto histórico? Não importa. De todo modo, pela lente dela, a tensão vira mais sensualidade e cumplicidade do que sexualidade.
Queremos casais do mesmo sexo naturalizados nas comédias, comédias românticas, suspense, terror, dramas. Em resumo: quando será que as relações homoafetivas poderão ser tratadas sem diferença, com humor e leveza em todos os gêneros cinematográficos? E mais: com final feliz. Já passou da hora. Amor é amor. E ponto.
Retrato de uma Jovem em Chamas. Foto: MK2 Diffusion
Um filme sensorial, com críticas sociais e que nos faz refletir sobre o que estamos vivendo. São essas as impressões que ficam após assistir O poço, de Galder Gaztelu-Urrutia, nova produção original espanhola da Netflix. O longa lançado em março, é cheio de camadas, interpretações marcantes e um enredo que bate em cada um de […]
Geralmente os filmes de suspense costumam ser, no mínimo, tensos, né? Agora, o que Entre facas e segredos, o longa dirigido por Rian Johnson, mostra é o quanto o humor pode fazer bem às histórias com assassinatos, perseguições e muitas desavenças familiares. É até curioso dizer, mas está aí uma delícia de filme! Sim, porque […]
A literatura costuma ser uma fonte de inspiração para o cinema. Tanto é que muitas adaptações já deram o que falar. Neste post separamos nove delas. Alguns clássicos e outras surpresas que muitos nem sabem que foram baseadas em livros. Esse também foi o tema desta semana do podcast Pipoca BH FM. Uma parceria do Culturadoria […]