Exposição inédita, ‘Portinari Raros’ se divide entre duas experiências: a tradicional, com a exibição de trabalhos, e a imersiva, que é deslumbrante
Patrícia Cassese e Helena Tomaz | Culturadoria
Presentes na apresentação para a imprensa da mostra “Portinari Raros”, que entra em cartaz nesta quarta-feira, dia 14, nas dependências do CCBB BH, o curador Marcello Dantas e o filho de Candido Portinari (1903 – 1962), João Candido Portinari, carregam consigo uma inabalável convicção: nunca antes na história houve uma exposição tão completa sobre o icônico artista, autor de obras emblemáticas como os painéis “Guerra e Paz” – que, como se sabe, desde os anos 1950 estão instalados na sede da ONU, em Nova Iorque.
“Não tenho nem palavras”, reconhece o simpático João Candido, à reportagem do Culturadoria, sobre o que estava sentindo ali, naquele momento, diante da concretização de um sonho de anos. “Logo, é uma emoção tão grande! Um projeto que eu já vinha acalentando há muitos décadas, na verdade. Primeiramente, levar (ao conhecimento do público em geral) um Portinari total, em sua verdadeira grandeza, de corpo inteiro. Não aos pedacinhos, como vinha sendo feito até hoje”, pondera ele, que é fundador e diretor-geral do Projeto Portinari. O uso da expressão “aos pedacinhos”, João Candido explicou logo depois.
Projeto Portinari
Criado em 2 de abril de 1979, junto à PUC-RJ, o Projeto Portinari, vale ressaltar, visa o mapeamento da obra de Candido Portinari e, tão importante quanto, a disponibilização da mesma ao olhar do público. “Vocês sabem que mais de 95% da obra de Portinari, hoje, está em coleções particulares, portanto, inacessíveis ao público. Assim, sempre que a gente fazia uma exposição, se defrontava com o problema da disponibilidade de uma ou outra obra. Ou porque uma era grande demais, ou o colecionador não emprestava, ou era um altar de igreja”, pontua.
O fato de João Candido, por meio do Projeto Portinari, ter se debruçado com tanto afinco sobre o legado do pai ao longo das últimas décadas, acabou sendo fundamental para que uma mostra do porte de “Portinari Raros” se concretizasse. “Até agora, são 44 anos fazendo esse levantamento. Catalogação, pesquisa, cruzamento das informações. Hoje, temos 5.400 obras catalogadas, assim como 30 mil documentos. Para vocês terem ideia, são seis mil cartas. Correspondências trocadas com nomes como Carlos Drummond de Andrade, Manoel Bandeira, Graciliano Ramos…”, lista João Candido.
Talento espraiado em vários estilos
Ao conduzir a visita à imprensa, o curador Marcello Dantas também não escondia o entusiasmo. “Esta exposição demonstra um amplo espectro deste que foi antes de tudo um experimentador. Revela as múltiplas linguagens que o artista fez uso. O que a gente gostaria é que, após a visita, o público tivesse um entendimento maior da ampla gama da prática do Portinari. Incluindo todos os interesses do artista que muitos sequer sabiam a respeito, e que são revelados aqui”.
Um outro aspecto que Marcello destaca é o fato de se tratar de uma mostra híbrida. “Ao mesmo tempo que a exposição tem um componente físico – a presença dass obras reais -, tem um componente digital, que, por sua vez, traz este Portinari gigante, muralista, de grande impacto. Que fez tantas grandes obras que já estão entronizadas na cultura do Brasil. E, aqui, elas também estão na forma do imenso, por meio da experiência imersiva que acontece no Pátio”.
Memória tangenciabilizada
Além disso. prossegue Dantas, “Portinari Raros” finalmente “dá vida” ao trabalho de 40 anos do Projeto Portinari. “Assim, torna tangível esse trabalho de memória. Ou seja, a gente parte desse manancial de documentos, gravações e material de pesquisa e tenta, aqui, transformá-lo em atrações vivenciáveis às pessoas. Porque (numa exposição nestes moldes) não é só o pesquisador que vai ter acesso a esse material. Qualquer pessoas vai conseguir começar a interagir com a memória desse tesouro”.
A projeção a que Marcello Dantas faz referência acontece no Pátio do CCBB BH e é, de fato, memorável, impactante. Provavelmente, fotos da experiência vão ser postadas a mancheias nas redes sociais nos próximos dias.
Percurso
O curador Marcello Dantas pontua que a mostra não tem nenhuma linearidade. “Nenhuma preocupação com isso, assim como Portinari nunca teve com a própria vida. Ele flertava com diferentes estilos, possibilidades e técnicas com a leveza de quem sai de manhã para tocar jazz, de tarde vai para um sambinha e, à noite, para um concerto. Em sua trajetória, ele volta, retorna, a diferentes métodos”.
Estrategicamente, ao adentrar o terceiro andar, o visitante se depara com a reprodução da última pintura de Portinari, na verdade, inacabada. Trata-se da representação de índia Carajá. “Ela está aqui por um motivo que o visitante vai entender ao final da mostra. Lembrando que ele deixou uma obra inacabada e que ela era de uma índia brasileira”.
A reprodução está em uma sala na qual há uma cronologia. “Ela mostra, ilustra, como os documentos – audiovisuais, fotografados, registrados em jornais – do Projeto Portinari aludem a cada um desses períodos. Tudo o que está relacionado com as imagens estão debaixo de cada um (tópico), ou seja, é uma espécie de cronologia viva, dinâmica”, aponta Dantas.
Biscoito Fino
O mergulho no universo de Portinari tem uma espécie de cereja do bolo, na visão de Dantas, a partir de um achado que ele eleva à categoria de uma preciosidade “que a gente encontrou na pesquisa desse projeto”. “É que Portinari deixou uma palheta das suas cores. É que a partir deste espectro que ele fala que a sua pintura se estabelece”.
“Ou seja, a gente vai falar, aqui, do elemento cor. Ou seja, existe um pintor que tinha uma sensibilidade cromática muito especifica. Permanecer por lá (nesta sala) um tempo e ajustar os olhos ao pulso dessa transformação (cromática) fará o visitante começar a entrar dentro da pintura”, entende o curador.
Animais retratados
Quando o visitante chega às primeiras obras do artista, depara com um quadro que, ressalta Marcello, espelha uma atitude básica da maioria dos artistas. “O que todo pintor normalmente faz, no início de sua trajetória artística, é pintar paisagem. Assim, Portinari começa primeiramente da janela dele, no Leme. Logo, tudo bem normal”.
Mas logo em seguida já temos um Portinari completamente do imaginário. “Não mais realista, não mais pintando o que via, mas o que imaginava, caso dessa paisagem no meio da caatinga. Aqui é possível ver claramente uma transição”.
Dantas também lembra que Portinari se tornou famoso pelos retratos (“pelas figuras humanas”) e pelos painéis históricos. “Mas penso que ninguém deu muita bola para uma vertente de sua pintura que eu, particularmente, acho linda, que é a forma como ele retratou os animais, a fauna”.
“É realmente emocionante. Cada animal tinha um traço muito específico, feito com muito cuidado”, atesta.
As projeções
Contendo quatro módulos temáticos do universo estético do artista: “Brasil de Portinari”, “Guerra e Paz”, “Infância” e “Arte Sacra”, as projeções serão realizadas diariamente nas paredes do pátio do CCBB, no período noturno.
Dantas entende que a experiência também permite ao visitante se atentar a alguns detalhes das obras do artista.
Ineditismo
O carioca Marcello Dantas, que, além de curador, também é diretor artístico, ressalta que a mostra a que os belo-horizontinos estão tendo acesso a partir desta quarta nunca aconteceu. “O que houve, antes, foram duas iniciativas completamente diferentes, que não só se fundiram, como ao resultado (desta fusão) foram acrescentadas mais coisas. Assim, o resultado é a mais completa exposição sobre Portinari, que tem todo o aspecto das obras raras, tem toda a pesquisa, dos personagens, da mulher, dos amigos, das histórias e tudo mais”.
Logo, uma experiência que fornece uma densidade de informação. “E ainda tem a experiência imersiva, no Pátio, além das outras que estão dentro do espaço. Assim, é uma mostra hibrida, que mistura a linguagem expositiva eletrônica, digital, com a linguagem física das obras”.
Assim, Dantas acredita que a iniciativa dá conta dos tantos Portinari, muitos dos quais algumas pessoas desconheciam, como o figurinista, ilustrador, cenógrafo. “Foi um pintor que passeou por mil estilos e mil coisas, e que produziu uma iconografia surpreendente. No final da visita, entendo que o visitante vai sair com a sensação de que, na verdade, havia muitos artistas num só homem”.
Em tempo: esta mostra não terá a habitual itinerância por todas as unidades do CCBB do país. Após BH, apenas o de Brasília a acolherá.
O artista
Um dos artistas brasileiros de maior projeção mundo afora, Portinari nasceu em Brodowski, São Paulo, em 29 de dezembro de 1903. Seus pais eram imigrantes italianos (Giovan Battista Portinari e Domenica Turcato), originários da região do Vêneto.
Em 1954, Portinari começou a apresentar sintomas do que viria a ser identificada como uma grave intoxicação pelo chumbo (conhecida como saturnismo). O metal estava presente nas tintas que usava. Ele faleceu no dia 6 de fevereiro de 1962, no Rio de Janeiro, justamente quando preparava uma grande exposição (com cerca de 200 obras) em Milão, onde tinha sido convidado pela prefeitura. A causa da morte foi justamente a intoxicação. Tinha apenas 58 anos.
Serviço
“Portinari Raros”
CCBB BH (praça da Liberdade, 450)
Quarta a segunda, das 10h às 22h, até o dia 7 de agosto
Os ingressos para a exposição são gratuitos, e podem ser retirados em bb.com.br/cultura ou na bilheteria do CCBB BH.