
Annie Ernaux, autora de "Paixão Simples". Foto: Eugene Gologursky
“Paixão simples” retoma o romance vivido pela escritora francesa em 1989 em mais um mergulho excepcional em sua própria intimidade
Por Gabriel Pinheiro | Colunista de Literatura
Se apaixonar perdidamente. Perder-se. Talvez essa seja uma chave importante para entendermos a paixão, esse sentimento intenso e singular, para muitos, experienciado apenas uma vez ao longo de toda uma vida. Em 1989, a francesa Annie Ernaux se apaixonou, uma “Paixão simples”, como nos diz o título do livro publicado pela autora originalmente em 1992, em que reconstrói essa experiência de pura entrega ao outro. “Não quero explicar minha paixão – o que me levaria a considerá-la ou erro ou um transtorno do qual seria preciso me justificar -, só quero mostrar o que ela é”. Com tradução da poeta Marília Garcia, esse é o mais recente lançamento da ganhadora do Prêmio Nobel de Literatura por aqui, publicado pela Fósforo Editora.
Experiência pessoal
“Desde setembro do ano passado, não fiz outra coisa além de esperar por um homem: que ele me telefonasse e viesse à minha casa”. É assim que Annie Ernaux começa a compartilhar conosco o relacionamento breve, porém intenso, que ela, divorciada e mãe de dois filhos já adultos, manteve com um homem estrangeiro e casado no final da década de 1980. Pouco a pouco, o tempo parece orbitar ao redor de A., esse homem, contado a partir do momento que os dois se encontravam e suspenso logo após o adeus – a angústia da espera marcaria as horas ou os dias até o próximo encontro. “Para mim não havia essa cronologia em nossa relação, eu só conhecia a presença ou a ausência”.
Ernaux sabe, prevê, que a intensidade do relacionamento vivido entre os dois acabaria por afastá-los em algum momento. “Gastávamos um capital de desejo”, ela declara. Mas, enquanto isso não acontecia, o estupor a dominava, um desejo que não parecia arrefecer. “Se uma mulher ou um homem confessavam estar vivendo, ou terem vivido, ‘um amor louco por uma pessoa’ ou ‘uma relação intensa com alguém’, eu sentia vontade de abrir meu coração”.

Paixão e escrita
Como em outros trabalhos da Nobel, a experiência íntima pura e crua é a matéria primordial de “Paixão simples”, assim como as reflexões que ela tece acerca do próprio ato da escrita, relacionando-o com os acontecimentos que marcam sua trajetória. “Com frequência tinha a sensação de viver essa paixão como se escrevesse um livro: a mesma necessidade de executar à perfeição cada cena, o mesmo cuidado com os detalhes”. Para Annie, a paixão é uma escrita, é um texto vivo, escrito continuamente. “Esse texto aqui é apenas um resíduo, um mínimo vestígio, daquele outro texto, vivo. Assim como o outro, um dia este aqui não significará nada para mim”.
No livro, Annie Ernaux traz uma das definições mais sublimes que já encontrei sobre esse ato, por vezes compartilhado, mas por tantas outras vezes solitário – o ato de se apaixonar: “Graças a ele, eu me aproximei do limite que me separa do outro, a ponto de às vezes imaginar que iria chegar do outro lado”. Breve e intenso, assim como o romance que possibilita sua escritura, “Paixão simples” é mais uma peça singular deste grande projeto autobiográfico de uma autora sem igual na cena literária mundial.
Encontre “Paixão simples” aqui.
Gabriel Pinheiro é jornalista e produtor cultural. Escreve sobre literatura aqui no Culturadoria e também em seu Instagram: @tgpgabriel