Em cartaz na cidade, o documentário “Othelo, o Grande” desvela aspectos tristes da trajetória de um ícone da comédia
Patrícia Cassese | Editora Assistente
Ao final do documentário “Othelo, o Grande”, de Lucas H. Rossi dos Santos, uma voz narradora lembra que, certa vez, perguntaram ao poeta Carlos Drummond de Andrade que brasileiro ele gostaria de ser. O itabirano respondeu algo do tipo: “Eu gostaria de ser um sujeito múltiplo, que pudesse fazer rir e chorar num grande auditório. E que também soubesse escrever. Que também fosse simpático e, finalmente, que também amasse muito as mulheres. Drummond arrematou: “Eu não estou fazendo uma abstração intangível. O meu sonho tem nome – e se chama Grande Otelo”.
Em cartaz na cidade, o documentário “Othelo, o Grande” se debruça sobre vida e trajetória artística de Sebastião Bernardes de Souza Prata (1915 – 1993). Mineiro de Uberlândia, Grande Otelo conquistou fama para além das fronteiras do Brasil – lembrando que o artista faleceu na França, justamente quando ia receber um prêmio em Nantes sofreu um infarto fulminante. O sucesso e o reconhecimento, porém, não foram suficientes para garantir ao ator e comediante uma vida fácil. Ao contrário. Assim, não há como chegar ao final do filme sem um aperto no peito, ao pensar quantos momentos sofridos este ícone passou nos bastidores – muitos deles, por conta do racismo.
“Ribalta Apagada”
Em entrevista ao Culturadoria, Lucas Rossi inclusive lembra um trecho do livro de poemas “Bom Dia, Manhã”, publicado pelo artista. “Em um dos poemas, ‘Ribalta Apagada’, ele diz muitas coisas, mas, entre elas: ‘Eu quero quebrar esse spotlight. Apaguem de uma vez, para sempre, as luzes dessa ribalta/ eu quero ficar aqui, sozinho’. A verdade é que ele não aguentava mais essa falsa ilusão de ser artista em um país no qual não se valoriza a arte. No qual não se valoriza o artista, que é o acontece na maior parte dos casos, sobretudo quando se é uma pessoa negra que começou a trabalhar em 1922, 1923”.
O cachê, se possível, na hora
Em certo momento do documentário, durante uma entrevista, um jornalista pergunta a Grande Otelo que personagem ele ainda gostaria de fazer. O artista responde: “Aos 60 anos, a gente não tem mais ilusões. Aos 60 anos, com quatro filhos… A gente não tem mais aquele papel que gostaria de fazer de uma maneira séria e objetiva. A gente tem aquele papel que faz para receber o cachê – se possível, na hora. É duro, mas essa é a verdade”. Sim, apesar da grandiosidade, Grande Otelo não chegou ao fim da vida gozando uma estabilidade financeira (absolutamente meritória), como endossa o diretor de “Othelo, o Grande”.
“Na verdade, durante toda a vida artística, ele foi muito prejudicado por não receber o dinheiro que deveria, o valor que outros atores receberam no lugar dele. Por exemplo, quando Otelo vai para a Atlântida fazer filmes com o Oscarito (1906 – 1970), eles formaram uma dupla. Ou seja, geralmente filmavam a mesma quantidade de cenas, tinham as mesmas páginas de diálogos, a mesma quantidade de dias de filmagem, tudo igual. Mas ele ganhava muito menos que o colega”, diz. Oscar Lorenzo Jacinto de la Inmaculada Concepción Teresa Díaz, o Oscarito, nasceu na Espanha, e brasileiro.
Um conjugado em Copacabana
Não só. O documentarista Lucas H. Rossi dos Santos lembra que os cartazes dos filmes da dupla sempre traziam a inscrição “Oscarito e Grande Otelo”. “Entende? O nome do Oscarito vem antes. Então, é um fato. Financeiramente, Grande Otelo foi muito prejudicado. Tanto que, no ano em que morreu, estava morando num conjugadinho em Copacabana. Um lugar super humilde, ainda mais pra um artista daquela estatura, daquela dimensão. Um cara que ajudou a construir a história da cultura brasileira, morrer assim… Acho que resume bem a parte financeira”, diz o diretor.
Tragédias
No entanto, a falta de retorno financeiro não foi o único problema vivenciado por Otelo. Na verdade, o mineiro teve uma vida perpassada por dificuldades das mais variadas ordens. Para começar, o pai morreu esfaqueado e a mãe, teria sido alcoólatra. A primeira esposa, Lucia Maria Pinheiro, matou o filho, Elmar, e, em seguida, suicidou-se. No documentário “Othelo, o Grande”, o próprio ator fala da depressão que vivenciou. Em outro momento, após o fim da era das chanchadas, confidencia que alguns profissionais não queriam trabalhar com ele, pelo fato de, em diversos momentos da carreira, ter chegado aos estúdios embriagado ou atrasado. Ou mesmo faltado à gravação.
Racismo
São absolutamente dolorosos os momentos em que, no documentário, Grande Otelo cita episódios de racismo, como ter que sempre entrar pela porta dos fundos. O diretor lembra que a questão financeira estava atavicamente ligada ao racismo propriamente dito. Mas este era ainda mais sensível porque não se limitava à remuneração – se estendia a ações, olhares, gestos etc. “Então, é fato que o ator foi prejudicado ao longo da vida, tanto na questão do dinheiro quanto com o fator psicológico. Impossível inclusive dissociar uma coisa da outra quando se fala em racismo”.
O diretor recorre a uma fala de seu próprio avô. “Ele dizia: ‘Quem fica para trás nunca está satisfeito’. E foi o que aconteceu com Grande Otelo no que, por exemplo, se relacionava ao tratamento assimétrico (por parte dos estúdios, produtores, não do ator) na parceria com Oscarito. Baseado nisso, o cara, claro, sofre à beça. Na verdade, se eu fosse me estender sobre isso, não falaria menos que uns 50 minutos, mas há uma outra fala dele sobre essa questão no filme”. Lucas se refere ao momento em que Grande Otelo fala que muitos dos papéis que interpretou não tinham nada a ver com ele ou com o negro. “Mas preciso pagar aluguel”, justifica. Em outro momento, ele revela que o que, à época, mais o aborrecia, era não poder comprar tudo o que os filhos pediam.
Gênese
Ao fim, “Othelo, o Grande” revela-se um filme primoroso e necessário, e não só por falar deste artista incomparável, único, de uma trajetória ímpar. Primeiramente, é uma questão de memória, de fazer jus ao artista. Mas assisti-lo é também uma aula sobre o cinema brasileiro e mesmo internacional (a parte sobre Orson Welles é interessante, bem como o relato sobre as filmagens de “Fitzcarraldo”, de 1982, sob a batuta de Werner Herzog).
E mais: também uma aula sobre as desigualdades que pairavam entre o exercício da profissão para um branco e um negro. O que, num espectro mais amplo, escancara o racismo – o estrutural e o explícito, do dia a dia – que marca notoriamente o país. Não que essa mazela tenha ficado para trás – obviamente, não. Mas a impressão que se tem é que, nos dias atuais, Otelo teria sofrido menos.
Desbravador
Perguntado sobre a gênese do projeto, o diretor diz: “Bom, eu sou apaixonado pelo Grande Otelo, né? Então, sempre quis fazer um filme dele. Desde que comecei a trabalhar com o cinema, falava: ‘Caraca, eu quero fazer um filme sobre o Grande Otelo’. Por ser um homem negro, que abriu esses espaços. Isso, lá atrás, quando praticamente nenhum negro ocupava esse lugar nas artes cênicas, sobretudo no Brasil. O Joel Zito dizia que o negro brasileiro artista, ele vinha muito da (dos territórios da ) escultura e da dança. Assim, o Otelo adentra as artes cênicas como um dos pioneiros. Claro, a gente teve o Benjamin de Oliveira (conhecido como o primeiro palhaço negro do Brasil, e também mineiro) e tal, mas o Otelo chega assumindo um protagonismo muito novo para aquela época”.
Assim, Lucas conta que, desde o momento em que entendeu isso, percebeu também que havia uma dívida em relação ao ator. “Se eu agora estou aqui, trabalhando com o cinema, querendo fazer um filme, tipo, eu devo isso a ele, né? Não só eu, mas os artistas negros em geral. Então, vem um pouco dessa motivação”.
Etapas
Já quando indagado sobre a etapa mais difícil da empreitada, Lucas começa por lembrar o quanto ainda é intrincado fazer cinema no Brasil. “Mas eu sinto que, no meu caso, o licenciamento foi uma fase muito complicada. Porque é um processo muito burocrático, são muitos acervos, é muito caro, né? E existe uma falta de cuidado mesmo com a memória. Então, a preservação desses arquivos é uma coisa que, no Brasil, ainda é um pouco precária”, pontua.
Ao mesmo tempo, artisticamente, ele lembra que a montagem foi uma etapa bem difícil também. “Porque foi um processo de entender como deixar certas coisas de fora. Era tanto material bom que, confesso, em alguns momentos, fiquei: ‘Meu Deus, eu não acredito que isso vai ficar de fora!’. Mas ia ter que ficar. Porque, de alguma maneira, concentrar a vida do artista Grande Otelo, do homem Sebastião, em 82 minutos, era um desafio imenso. Um desafio imenso (repete, como a dar ênfase). Veja, o cara viveu muito, fez muita coisa… Então, foi bem difícil, essa parte”.
Retrato do Brasil
Ao fim, perguntamos ao diretor o que ele diria sobre o seu personagem, tal qual Carlos Drummond um dia fez. “Cara, eu descreveria o Grande Otelo como o maior ator do Brasil, como um dos maiores artistas que esse país já teve. Mas eu acho que, de uma maneira mais poética, ele é um retrato de Brasil. Quando eu imagino esse país e tento transpô-lo para uma imagem, o Otelo é um pouco do que eu vislumbro. Porque é um artista enorme, porém, menos valorizado do que deveria. Um cara incrível, com um talento único, mas que, ao longo da vida, acabou entrando em uma espécie de decadência por uma questão racial”.
E, acrescenta Lucas, um artista que sofreu absurdamente com o racismo. “Então, eu acho que o Brasil é isso, é uma mistura de talento com melancolia. Os traumas são muitos. E estamos em um país no qaul o racismo é muito presente, e é muito violento, o que gera realmente muitos traumas. Desse modo, eu diria que o Otelo, pra mim, é de fato um retrato fiel do país”.
Confira, a seguir, o trailer
Serviço
“Othelo, o Grande” – Documentário de Lucas H. Rossi dos Santos
Una Cine Belas Artes (Rua Gonçalves Dias 1581, Lourdes), às 15h.
Cinema do Centro Cultural Unimed-BH Minas (Rua da Bahia, 2.244, Lourdes). Sala 1, às 14h (somente nos dias 12, 14, 16 e 18/9)