Um apartamento entulhado. Caixas e mais caixas, objetos que nunca foram, e nunca serão, utilizados. Acúmulos e excessos. Um playground para as baratas. No apartamento de número 402, de um prédio muito perto do mar, mas de onde não podemos vê-lo pelas janelas, mora a nossa narradora, Abigail, sua irmã e seu pai acumulador, Berta e Lúcio. Os três habitam este espaço peculiar acompanhados das baratas. Os tais caquinhos é o primeiro romance de Natércia Pontes, lançamento da Companhia das Letras. Ela é autora de Copacabana dreams (2012), finalista do prêmio Jabuti.
“Ele desviava com desenvoltura de caixas que chegavam a roçar o teto, dos quadros por pendurar escorados na parede, das montanhas de objetos aleatórios que não à toa estavam dispostos ali, afinal, tinham, sim, um propósito futuro. (…) Lúcio caminhava como um gato em meio aos destroços da nossa vida comum.”
Aqui, apesar de tudo o que sobra, da cordilheira de caixas, ainda há espaço para ausências. Zoma partiu levando as outras duas irmãs de Abigail e Berta: Huga e Ariel. Faz falta uma ordem na rotina dos dias, um controle no caos natural da convivência diária. Faltam também lençóis recendendo a amaciante – que tocam macios a pele, como um carinho – e a geladeira e a dispensa fartas de alimentos – que tocam macios o estômago, também como um carinho. O apartamento 402 como espelho da vida em família: “Lá fora tudo parecia estar em ordem. Lá dentro a louça era desencontrada”.
Adolescência e vida familiar
Abigail vai tentando dar ordem ao caos de sua cabeça adolescente neste diário. Aqui ela vai colando estes caquinhos do dia a dia em família, da monotonia da vida escolar, das primeiras – e, muitas vezes, definidoras – experiências da adolescência, das rusgas com a irmã e dos conselhos e do carinho, a seu modo, do pai. Espaço para o registro de sonhos, delírios, traumas, numa escrita que também registra um fluxo de consciência da narradora. Há a intensidade da adolescência nestes registros, aquela sensação de que as coisas, os sentimentos são definitivos, para sempre. “Eu não estou vivendo um momento bom, aliás, tudo o que eu falo é repugnante. O meu ser é repugnante”.
Os tais caquinhos é um livro que transborda vida. Ou seja, ele respira, tem cheiro – o odor adocicado das baratas que circulam por todos os espaços -, e tem gosto – o salgado do suor na pele do corpo cheio de hormônios em ebulição. Ora cômico, ora trágico, Natércia constrói o retrato desta vida familiar e, nas suas idiossincrasias, vamos identificando um pouco de nós e daqueles que dividem (ou dividiram) o mesmo teto conosco.
“Escrever é antinatural. Escrever é muito mais difícil do que ter filhos.”
Processo de escrita
Sobre o processo de escrita de Os tais caquinhos, Natércia publicou um interessante relato no jornal O Globo no ano passado. Este seu primeiro romance foi retomado e finalizado após o nascimento de suas gêmeas. Gravidez de risco, a autora precisou ficar em repouso absoluto durante quatro meses – período em que não escreveu uma só linha. “Eu dava de mamar enquanto anotava cenas inteiras no celular de forma esquemática, numa série de e-mails que mandava para mim mesma. Tenho centenas deles.”
Encontre Os tais caquinhos aqui.