Menu
Literatura

“Os meninos adormecidos” do francês Anthony Passeron reconstrói trauma familiar e coletivo

“Os meninos adormecidos” resgata trajetória do tio do autor, vítima do HIV e do vício em heróina em pequena cidade francesa nos anos 1980
Anthony Passeron (foto Jessica Jager)

Anthony Passeron (foto Jessica Jager)

“Os meninos adormecidos” resgata trajetória do tio do autor, vítima do HIV e do vício em heróina em pequena cidade francesa nos anos 1980

Gabriel Pinheiro | Colunista de Literatura

Em finais dos anos 1980, uma pequena comunidade no interior da França encontra, com uma frequência assombrosa, alguns de seus jovens adormecidos, desmaiados em público, na rua, em plena luz do dia. Noites intermináveis de bebedeira poderiam ser a resposta, mas há algo de diferente na ausência de consciência daqueles meninos. De olhos revirados, eles têm as mangas das camisas levantadas e uma seringa enfiada no braço. “Eram particularmente difíceis de acordar. Os tapas e os baldes de água fria já não eram suficientes. Várias pessoas se reuniam para levá-los até a casa de seus pais, que contavam com a discrição de todos”. “Os meninos adormecidos” é o primeiro romance do francês Anthony Passeron, publicado pela Fósforo Editora, com tradução de Camila Boldrini.

Duas graves crises

Anthony Passeron parte da experiência de sua família para dizer de duas graves crises que marcaram a década de 1980 não apenas na França, mas ao redor do globo: o consumo de heroína e o descobrimento do vírus HIV. Um silêncio familiar imposto circunda a vida e a morte de Desiré, tio do escritor. Pouco ou nada se fala sobre aquele filho primogênito dos seus avós paternos, a criança preferida, a cria mais mimada. “Na família, todo mundo fez a mesma coisa com relação a Desiré. Meu pai e meu avô não falavam no assunto. (…) À sua maneira, cada um confiscou a verdade”. 

Desiré fora um daqueles garotos adormecidos, enfrentando um longo ciclo vicioso de dependência da heroína: o uso cada vez mais frequente, a falta de dinheiro para a manutenção do vício, a descoberta e a negação pela família, crises de abstinência cada vez mais dolorosas, o retorno à droga e ao prazer e à paz momentânea que ela proporcionava. O compartilhamento de seringas para o uso da heroína contamina Desiré com o vírus HIV no período em que este é descoberto pelo mundo, com pessoas aparentemente saudáveis vendo seu sistema imunológico caindo ao chão por um agente misterioso e ainda parcamente conhecido. Tratamentos ineficazes e a incapacidade de abandono do vício marcam a breve vida restante de Desiré. “Este livro é a última tentativa de fazer com que algo sobreviva. Ele mistura lembranças, confissões incompletas e reconstruções documentadas. É fruto do silêncio deles”.

Corrida científica

“Os meninos adormecidos” intercala a história familiar com a história da corrida da ciência – sobretudo a francesa – frente ao vírus HIV. Pouco a pouco construímos tanto um quebra-cabeça íntimo, repleto de peças faltantes que são minuciosamente buscadas por Anthony Passeron para a reconstituição da curta vida do tio, quanto um quebra-cabeça público, entre França e Estados Unidos, onde diferentes grupos de médicos e cientistas embarcam numa corrida contra o tempo no combate a um inimigo silencioso e mortal. A vergonha e o preconceito marcam os pacientes e vítimas da aids desde o início, desde a sua descoberta. Passeron registra os diferentes percalços frente à opinião pública e aos próprios governos enfrentados por especialistas americanos e franceses entre os anos 1980 e 1990. A pesquisa científica se transforma não apenas numa guerra contra um patógeno, mas numa guerra contra o medo e a desinformação.

Público e particular

Em um gesto duplo, entre o público e o particular, Anthony Passeron reconstrói tanto a história de um indivíduo quanto a de uma sociedade em plena crise: tanto sanitária, quanto humana. Neste romance comovente, a partir de uma pesquisa minuciosa, o luto de uma pequena família diz não apenas de uma dor particular, mas de uma dor coletiva e compartilhada. “Os meninos adormecidos” é um olhar sensível e profundamente humano para a vida e a morte, para o orgulho e a vergonha, para uma solidão irremediável, para o medo e o preconceito e para aquilo o que permanece, apesar de tudo: as memórias, por mais que tentemos guardá-las.

Encontre “Os meninos adormecidos” aqui.

Gabriel Pinheiro é jornalista e produtor cultural. Escreve sobre literatura aqui no Culturadoria e também em seu Instagram: @tgpgabriel (https://www.instagram.com/tgpgabriel)

Conteúdos Relacionados