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Literatura

O Brasil pelo olhar de um homem comum em “O que é meu”

Fotografia digital de José Henrique Bortolucci. Ele é branco, tem cabelos claros, barba, usa camisa branca e sorri. Ao fundo, há plantas.

José Henrique Bortolucci. Foto: Caio Oviedo.

“O que é meu”, de José Henrique Bortolucci acompanha o pai, caminhoneiro que acompanhou transformações no cenário do país por décadas 

Por Gabriel Pinheiro | Colunista de Literatura

Durante cinquenta anos, de 1965 a 2015, José Bortoluci cruzou o Brasil como motorista de caminhão, desbravando as mais diversas direções de um país continental. Muitas histórias, pouco a pouco, se sedimentaram na trajetória do caminhoneiro, compartilhadas com a família, amigos e outros colegas de ofício. A memória de um homem comum que observou transformações profundas na paisagem social, política e cultural de um país por meio de suas estradas é a matéria primordial de “O que é meu”, primeiro livro do sociólogo e professor José Henrique Bortoluci, lançado pela Fósforo Editora.

“O que é meu é tudo aqui que gravei na memória. Então a única coisa que posso fazer é tentar recordar e contar”. 

Conversas entre pai e filho

“O que é meu” é estruturado a partir das conversas entre os dois Josés, o caminhoneiro aposentado e o escritor, o pai e o filho. José Bortoluci, o pai, é Didi dentro de casa. Para os colegas motoristas, ele era o Jaú, nome de sua cidade natal. Ao passar semanas longe de casa, muitas vezes virando o mês, o motorista retornava ao lar com o baú vazio, descarregado daquilo que transportara de um estado a outro, mas com a cabeça carregada de novas memórias, acontecimentos testemunhados durante a viagem e aquelas histórias contadas por outros parceiros de profissão. “Um herói esquecido. Com cinquenta anos de caminhão, de estrada, posso dizer isso com certeza: caminhoneiro é um herói esquecido”.

Com o pai, agora aposentado, isolado em Jaú devido à pandemia do coronavírus, José Henrique começa a registrar as memórias de estrada do caminhoneiro. Foi o início de um processo que culminaria com a publicação deste livro. Se uma grave crise de saúde, humana e social afetava a todos naquele momento, o seio familiar enfrentaria, concomitantemente, um novo inimigo: Didi recebeu o diagnóstico de um câncer. Um tumor abria caminhos dentro do corpo fragilizado de 78 anos. O avanço da doença se torna, também, uma potente metáfora para uma doença social que avançava a passos largos na realidade brasileira. “Escrevo entre duas devastações. Uma delas acomete o corpo do meu pai. A outra é coletiva, nacional. Nos últimos anos, fomos abatidos pelo macabro experimento político do grande mal que escancara os dentes para a pilha de mortos que nem mais conseguimos contar.”

Lembranças

Na medida em que resgata as lembranças do pai, José Henrique constrói um longo ensaio biográfico, que olha tanto para o particular quanto para o público, numa análise político-social aguda da história brasileira de meados do século XX e suas intensas repercussões no hoje. Se as memórias do pai narram a construção de uma família, elas também narram a construção de um país. Didi foi testemunha ocular de intensas transformações físicas, políticas e sociais no Brasil.

Acompanhamos, por exemplo, a transformação da paisagem amazônica, o ideal de conquista daquele espaço dito “selvagem” pelo governo ditatorial pós-golpe de 1964, pela experiência do caminhoneiro. Uma suposta conquista que é uma das causas do genocídio indígena e da exploração predatória desenfreada dos recursos ali existentes, dois processos que seguem em pleno funcionamento. “Eu já achava que aquilo era destruição. Eu tinha uma ideia de que não era coisa boa, mas na época ninguém falava nisso, achavam que a floresta não ia acabar nunca. Era tudo incentivado e a gente tinha que sobreviver”.

Capa do livro "O que é meu". A capa é uma fotografia do interior de um caminhão. Vê-se o volante, o banco e a janela. Tudo está coberto por um filtro vermelho.
Capa de O que é meu. Editora Fósforo.

Semelhança com Ernaux

São fortes as reflexões que o escritor desenvolve a respeito dos lugares sociais ocupados pelo pai e por ele. O seu êxito nos estudos e, consequentemente, no campo profissional, marca uma fuga de um passado onde a vida familiar era assombrada pela pobreza. Há um sentimento de ruptura com uma classe social, mas algo sempre permanece, um vínculo com a realidade de outrora. Neste olhar, a escrita remete à obra da francesa Annie Ernaux – ela também uma autora para quem o íntimo é matéria básica para a análise do coletivo – que, inclusive, é trazida para o texto: “A escritora Annie Ernaux, em sua vasta obra, aborda por diversos ângulos uma trama central: a história da filha que se afasta da classe de origem dos pais e que depois tenta compreendê-los, ao mesmo tempo que busca fazer sentido de seu próprio lugar no mundo”.

“O que é meu” é um daqueles casos em que, com poucas páginas, sentimos ter algo especial em mãos. José Henrique Bortoluci, num texto de marcante sensibilidade, tomado pelo afeto, enlaça passado e presente, a história de um homem comum e a história maior de um país, de um projeto de nação que (ainda) não se concretizou. “Meu patrimônio são as palavras do meu pai – as palavras daquelas histórias da minha infância e as que ouvi nestes últimos anos, enquanto ajudava a cuidar de seu corpo frágil”.

Lançamento em Belo Horizonte 

José Henrique Bortolucci vem para a capital mineira na próxima semana para um bate-papo, seguido de sessão de autógrafos. 

O encontro será na Livraria Jenipapo, com mediação da escritora Nayara Rocha, no dia 6 de junho, terça-feira, às 19h. A entrada é gratuita.

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Gabriel Pinheiro é jornalista e produtor cultural. Escreve sobre literatura aqui no Culturadoria e também em seu Instagram: @tgpgabriel.

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