“O parque das irmãs magníficas”. Narrativa singular, a obra caminha entre o caráter documental da autobiografia
Por Gabriel Pinheiro | Colunista de Literatura
Quando criança, um garoto vê encantado a artista Cris Miró na televisão. Miró foi a primeira vedete travesti da Argentina. “Eu também quero ser assim. Queria aquilo pra mim”. O menino “reencarnaria” anos depois como Camila Sosa Villada, atriz e escritora, autora deste “O parque das irmãs magníficas”.
Com narrativa singular, a obra caminha entre o caráter documental da autobiografia e o que há de melhor na tradição do realismo mágico latino-americano. Conta sobre o encontro e o convívio de Camila com um grupo de travestis na cidade de Córdoba nos primeiros anos depois da transição. Com tradução de Joca Reiners Terron, o livro é publicado pela Tusquets.
Camila Sosa Villada deixa a família biológica, em uma pequena cidade no interior do país, para cursar a universidade de Comunicação Social em Córdoba, segunda principal metrópole argentina. Ali, a prostituição torna-se uma necessidade para a sobrevivência, para a possibilidade de permanência e continuidade dos estudos. Sendo assim, é no Parque Sarmiento, importante ponto de prostituição na província, que ela conhece aquelas que, em pouco tempo, se transformarão em imagem de família, de lar e de cuidado.
A potência do corpo travesti
As irmãs magníficas são outras mulheres trans que encontram na vida noturna no parque a única forma de subsistência. Sobreviver apesar da violência dos clientes, do futuro incerto que se esconde por detrás de cada porta fechada para o início de um programa, da aversão da vizinhança: “Existe um monstro lá fora, um monstro que se alimenta de travestis”.
Ao narrar a própria história, Camila abre espaço para as histórias de vida das diferentes mulheres com quem conviveu. Conta sobre dramas e traumas, mas não só: transforma em texto toda a potência que há na existência e no corpo travesti. Como nos diz Gal Costa (cantora, inclusive citada em um momento da narrativa), em letra de Caetano Veloso: “Cada um sabe a dor e a delícia de ser o que é”.
A autora desabafa sobre como transicionar-se como travesti é, para ela e para tantas outras, abrir mão do afeto e da proteção do seio familiar. Para contar com tais garantias, era prerrogativa se adequar ao mundo deles, retornar à “vida do homenzinho de quem eu tinha usurpado o corpo sem autorização”.
Blog foi embrião do livro
“O parque das irmãs magníficas” tem como embrião um blog mantido por Camila durante aquele período que é narrado no texto. Na época, o curso universitário – primeiro a Comunicação Social, depois o Teatro – era levado em paralelo à vida noturna. Nas madrugadas, entre as duas vidas, de estudante e prostituta, uma terceira: a escrita.
O texto é profundamente honesto. Sendo assim, se constrói na vida vivida na pele, escrito a partir daquelas cicatrizes que marcam permanentemente um corpo e uma mente. Camila conta as memórias de infância, quando, por exemplo, escutou a vontade do pai em lhe matar. A partir daí, então, o desejo pela própria morte torna-se também uma realidade: um prematuro fantasma do suicídio.
Há um momento em que, ao dizer de mais uma situação de violência contra uma irmã, aproximadamente na metade da narrativa, Camila nos pergunta diretamente: “Quantas vezes essa palavra foi escrita aqui?”. Não foi a primeira e nem será a última até o final da leitura.
O fantástico
Salta aos olhos na experiência de leitura de “O parque das irmãs magníficas”, por exemplo, o mergulho da autora na tradição do realismo mágico da América Latina. Então, se é um relato que tem como base a experiência autobiográfica – e toda a violência de uma realidade comum – o livro abraça a fabulação, trazendo traços da mitologia, das histórias de terror e dos contos de fada.
Assim, convivem na narrativa homens sem cabeça, uma lobiscate – a sétima filha homem de uma família convertida em monstro em noites de lua cheia -, uma matrona travesti de 178 anos e uma irmã que pouco a pouco vê-se metamorfoseada em pássaro.
É de uma beleza e de uma poesia sem tamanho o caráter fantástico da narrativa. Assim, longe de tentar suavizar a brutalidade de uma realidade marcada pela dor, onde se dorme com os olhos abertos e o sabor da miséria na boca, seus elementos mágicos nos permitem um contato visceral com toda a potência que há por dentro dessas vivências e desses corpos.
Transcendências
Há, ainda, muitos outros momentos em que sua escrita transcende. Como quando um bebê, abandonado no Parque Sarmiento, é adotado por Tia Encarna. Ela, uma travesti de quase 180 anos, é uma espécie de figura materna, epicentro por onde orbitam as constelações de travestis que convivem no parque. Encarna amamenta a criança, apesar da aparente impossibilidade biológica do ato. No seio travesti, o bebê não apenas se alimenta, mas drena a dor histórica que habita o corpo de sua mãe adotiva.
Um retrato vívido da cena travesti cordobense, mas que encontra muitas interseções com a realidade brasileira, “O parque das irmãs magníficas” é um dos livros mais originais e marcantes que tive contato em tempos recentes. Entre as dores e as delícias de ser quem se quer ser, Camila Sosa Villada constrói um texto originalíssimo que, apesar da sombra da morte, transborda vida e afeto.
Encontre “O parque das irmãs magníficas” aqui
Gabriel Pinheiro é jornalista e produtor cultural. Escreve sobre literatura aqui no Culturadoria e também em seu Instagram: @tgpgabriel (https://www.instagram.com/tgpgabriel)