
Colagens de elementos reais da gripe espanhola de Curitiba em 1918. Foto: Arte/Fernanda Rossi
Um homem eu caminho sozinho
nesta cidade sem gente
as gentes estão nas casas
a grippe (O mez da grippe, p. 9)
Uma cidade sem gente. O governo solicita que sejam evitadas as aglomerações. Cinemas e “outras casas de diversão” estão temporariamente fechados. Não visite seus amigos, permaneça em casa. Proibido o acompanhamento de velórios de vítimas de “moléstias transmissíveis”, devido ao risco de contaminação. Isso enquanto ainda restam caixões disponíveis. Ou enquanto os responsáveis pelos velórios e pelos enterros não sucumbiram eles mesmos à “peste”. Nos jornais, anúncios de remédios milagrosos. Toda cura para todo mal.
Parece 2020, esse ano que ainda não terminou, mesmo enquanto escrevo este texto já no segundo mês do ano seguinte. Parece a covid-19. Facilmente essa descrição poderia ser usada para falar de qualquer cidade brasileira. Chegou a sair de casa, por necessidade, trabalho, durante as semanas, meses de lockdown? É possível que tenha encontrado uma cidade deserta. Cinemas, teatros fechados. Comércio, bares.
Sim, parece muito 2020, mas é 1918. É Curitiba durante a epidemia da gripe espanhola que está no cerne de O mez da grippe, essa pequena joia rara da literatura brasileira, de autoria de Valêncio Xavier. Publicado pela primeira vez em 1981, este trabalho de Valêncio estava há 22 anos esgotado, tornando-se uma verdadeira mina de ouro para sebos, superando facilmente os R$ 300. Para nossa sorte, a editora Arte e Letra soltou uma nova edição do livro no ano passado, em um acabamento primoroso: numerada, impressão em serigrafia e encadernada à mão.
A narrativa
O mez da grippe tem uma estrutura única: o autor faz uso dos mais variados materiais e fontes para reconstruir o início e o desenvolvimento da epidemia na capital paranaense em 1918. Recortes de jornais – matérias, anúncios, notas oficiais do governo -, o relato de uma sobrevivente, Dona Lúcia, e a descrição de um médico solicitado para atender uma paciente enferma. Ele descreve seu contato com a paciente em forma de um perturbador poema erótico, imagine.
Tudo é recortado, reconfigurado, remixado. A narrativa se constrói nessa polifonia de vozes e materiais, criando uma história surpreendentemente concisa.
De 1918 para 2020
Voltemos a 2020. Penso em como reagiria Valêncio Xavier caso estivesse vivo durante a atual pandemia da Covid-19. É assombroso, mas não surpreendente, perceber como os mesmos erros parecem estar se repetindo hoje. A demora na resposta do poder público, a população que insiste em se aglomerar. E a cloroquina e a ivermectina? Os remédios milagrosos, sem nenhuma comprovação científica. Ou ainda “o injustificado interesse das autoridades sanitárias de ocultar a verdadeira situação”, diz uma nota de um jornal curitibano em 1918, mas que poderia estar impresso numa reportagem hoje. Afinal, temos em 2020 um consórcio de veículos de comunicação para veicular dia-a-dia números mais precisos de novos casos e óbitos devido ao Coronavírus, dada a lentidão e a não confiança nos dados oficiais.
Não assusta o crescente interesse na obra de Valêncio Xavier durante esta pandemia. O mez da grippe nunca esteve tão atual.
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Gabriel Pinheiro é jornalista e produtor cultural, sempre gasta metade do seu horário de almoço lendo um livro.

Capa do livro “O mez da grippe”. Crédito: Editora Arte e Letra