
Riley Sager . Foto Michael Livio
“O massacre da Família Hope” é situado na década de 1980 e conta história de crime hediondo contra uma família com apenas uma sobrevivente.
Gabriel Pinheiro | Colunista de Literatura
“Aos dezessete anos, Lenora Hope, alucinada,
Matou a própria irmã enforcada.
Matou o pai a facadas e, em delírios febris,
Tirou a vida da mãe, que era tão feliz.
Lenora sempre diz: ‘Não fui eu.’
Mas é a única que não morreu.”
Há mais de cinco décadas, essa cantiga é entoada por crianças de uma pequena cidade do estado do Maine, nos Estados Unidos. Longe da pureza comum a tantas cantigas infantis, essas rimas remontam um crime bárbaro ocorrido naquele local em 1929. Quase. Restou apenas uma sobrevivente, Lenora Hope, a filha primogênita. Vítima ou algoz? Sobrevivente ou responsável pela morte dos pais e da irmã caçula?
Lenora se tornou a principal suspeita pelo crime hediondo, mas não foram encontradas provas que a conectassem aos crimes. Se não foi condenada pela justiça, a garota foi condenada pela comunidade, se isolando, desde então, em Hope’s End, a grande mansão da família, construída no alto de um penhasco. “O massacre da Família Hope” é o novo suspense de Riley Sager, lançado pela Intrínseca com tradução de Renato Marques.
54 anos depois
No início da década de 1980, a jovem Kit McDeere retorna ao trabalho como cuidadora após um período de suspensão. Um descuido com o armazenamento da medicação de sua última paciente ocasionou a morte da mulher. Kit foi absolvida, após uma intensa investigação policial, mas sua vida nunca mais voltaria ao normal. Por mais que, neste retorno à agência de cuidadores, ela recebe a incumbência de cuidar de uma senhora de setenta anos, após a estranha fuga de sua última cuidadora. Com a capacidade de fala perdida após uma série de derrames, a septuagenária está confinada a uma cadeira de rodas. É Lenora Hope. A morte e a culpa parecem conectar essas duas mulheres. Mas há muito mais pontos de contato entre as duas do que a simples superfície parece apresentar.
Plot twists e proximidade com outras clássicas mansões da literatura
“O massacre da Família Hope” é um daqueles suspense rocambolescos e tomados de plot twists, que busca estar sempre um passo – ou dois, ou três – do leitor. No encontro entre as duas personagens, uma série de revelações vêm à tona, de tal forma que segredos familiares pouco a pouco erodem a harmônica imagem de uma família perfeita.
A erosão aí é metafórica, mas outro processo de deterioração física é concomitante: é a própria mansão, a Hope’s End, que pouco a pouco parece perder sustentação, expondo rachaduras e a inevitabilidade de um futuro fim. Aliás, essa mansão, onde a maior parte da ação se desenvolve – no passado e no presente – talvez seja a grande protagonista da narrativa, que traz ecos de “Rebecca”, de Daphne Du Maurier, e “A assombração da casa da colina”, de Shirley Jackson.
“Não há como não notar a presença do abismo. Ele nos atrai, nos instiga a chegar mais perto, nos faz querer espiar além da borda, desafiar o destino. Percebo que é isso que venho fazendo desde que cheguei a Hope’s End: avançar rumo ao que é proibido. Olhar para coisas que eu não deveria ver, cutucar coisas que não deveriam ser cutucadas. Tudo por causa de uma esperança equivocada de que provar a inocência de Lenora vai, de alguma forma, legitimar a minha inocência também.”
Entre o whodunnit e a literatura gótica
Assim sendo, Riley Sager é eficiente na construção do suspense, que caminha entre o clássico whodunnit e a literatura gótica, intercalando duas vozes narrativas – de Kit e de Lenora. Se não consegue falar, Lenora busca formas de se comunicar com a cuidadora. Como uma espécie de Sherazade, a idosa compartilha, pouco a pouco, os segredos e detalhes nunca revelados sobre o crime que marcou a cidade, por vezes, em doses homeopáticas, mantendo tanto a interlocutora quanto o leitor enredados em sua trama sombria – e, como esperado, nada confiável.

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Gabriel Pinheiro é jornalista e produtor cultural. Escreve sobre literatura aqui no Culturadoria e também em seu Instagram: @tgpgabriel (https://www.instagram.com/tgpgabriel)