Por Gabriel Pinheiro | Colunista de Literatura do Culturadoria
Um dos principais nomes da literatura brasileira contemporânea, Daniel Galera é responsável por um dos grandes romances do nosso tempo – Barba ensopada de sangue, de 2012, vencedor do Prêmio São Paulo de Literatura. Aguardava com ansiedade seu novo trabalho, O deus das avencas, pela possibilidade de encontrar nele uma nova etapa na escrita do autor, experimentando em gênero e forma, refletindo sobre o hoje em uma chave diferente do realismo de seus trabalhos até então. Além disso, o livro também chega após um período de crise criativa experimentada por Galera – e compartilhado com os leitores em sua newsletter “dentes guardados”. Olha, que experiência surpreendente é O deus das avencas.
Nesse novo trabalho, o autor reúne três novelas escritas entre 2019 e 2021. Nos textos, Galera mira seu olhar para questões urgentes do mundo contemporâneo. Como, por exemplo, a política, a tecnologia e a devastação ambiental. Tudo isso em textos que se passam num passado recente ou num porvir que, em um primeiro momento, parece muito distante, mas, na verdade, já pode estar em pleno avanço.
O enredo
Na novela que dá título ao volume, um casal busca se isolar enquanto aguarda o nascimento do filho poucos dias antes da eleição presidencial de 2018. É curioso como o texto nos passa uma impressão de um passado já tão longínquo, tamanhos os acontecimentos no país e no mundo de lá pra cá: mesmo que ainda não se tenha completado três anos desde aquela catástrofe, quer dizer, eleição.
Se para o casal, em 2018, o isolamento – fechar-se em casa, desligar o modem de internet e os dados celulares, buscando um silêncio frente às notificações incessantes e invasivas dos algoritmos – era uma escolha, vivemos, ao longo da pandemia de Covid-19 – longe ainda de terminar – um isolamento forçado e necessário. Mas tanto no texto quanto na realidade, o isolamento se dá frente a um exterior insalubre e perigoso: se não há Coronavírus no ar de 2018, outro “microorganismo” nocivo já circulava pelo país desde então.
Enquanto aguardam o momento de irem para o hospital, as contrações, que doem, são martirizantes. Não são causadas apenas pelo filho prestes a nascer, mas pelo próprio tempo presente, que oprime, assombra: as incertezas com o futuro, em um país há dois dias da definição de seu próximo presidente.
Segunda novela: Tóquio
Se O deus das avencas nos dá a impressão de um passado já distante, nas próximas duas novelas Daniel Galera mira seu olhar para o futuro, adentrando o universo da ficção especulativa, da ficção científica. Em Tóquio, o maior dos três textos, o autor escreve uma São Paulo em 2050, devastada por catástrofes, doenças e pelas próprias tecnologias criadas pelo ser humano.
Aqui, Galera escreve um futuro de pós-humanos – a possibilidade de digitalização cerebral, na substituição de uma vida natural, biológica, por uma suposta eternidade artificial. Se o autor traz para a narrativa discussões acerca do colapso tecnológico e do avanço da inteligência artificial, ele também destaca questões que dizem da própria humanidade, da relação do homem com si mesmo e com o outro.
Questões da contemporaneidade permanecem prementes nessa São Paulo futura. A solidão, a fadiga com a tecnologia, as relações interpessoais em permanente crise e a falta de afeto. Não à toa, muitas profissões neste futuro especulativo de Galera podem ter se tornado obsoletas ou substituídas pela inteligência artificial. Mas não a do terapeuta. Aqui, a terapia se torna tão ou mais necessária, já que as questões e aflições humanas permanecem em constante crescimento, as neuroses e conflitos existenciais intensificados na relação com as tecnologias e na relação – ou na falta de relação – entre pessoas.
Tóquio traz uma narrativa instigante, num universo ricamente criado pelo escritor, muito próximo do nosso – por mais assustador que isso possa parecer. Neste futuro, para entrar em casa é preciso desinfetar-se. Além disso, tirar a máscara de proteção e realizar testes imediatos para as mais variadas doenças: não parece tão distante do hoje.
Terceira novela: Bugônia
Na última novela, Bugônia, Daniel dá mais um passo no campo da ficção especulativa, numa chave diferente da anterior. Nela adentramos um futuro pós-apocalíptico, onde a natureza parece querer tomar de volta aquilo que é seu por direito. Acompanhamos uma comunidade isolada, que segue numa existência baseada em frágeis elos de pertencimento entre seus integrantes e a necessidade de uma relação mais simbiótica entre o homem e a natureza. Essa simbiose se dá, sobretudo, num curioso acordo criado entre esta comunidade e as abelhas.
Criar e recriar ligações, transformá-las em comparação com o passado, olhando para ele como forma de não voltar a repetir os seus erros. O desafio de lidar com a própria natureza e violência humanas, na relação com o outro que é uma ameaça apenas por ser diferente.
Galera aposta aqui numa escrita mais poética, que acompanha sua jovem protagonista frente à fragilidade do que resta deste universo do qual ela faz parte. A prosa inventiva da novela dialoga com o próprio olhar da personagem, curioso, questionador acerca desse mundo, repleto de segredos e ameaças. É o que mais se destaca do conjunto em termos de escrita, trazendo um frescor para a literatura do autor.
Em busca de novos caminhos narrativos
Encontramos em O deus das avencas um escritor que busca novos caminhos para a sua ficção, em termos de formas e temas, sem romper o diálogo com sua produção anterior. Seja no presente ou num futuro especulativo, as relações humanas, a psicologia dos personagens e a solidão permanecem no radar de Galera ao lado de questões trazidas pelo boom tecnológico e seus efeitos sobre a psique humana e a natureza, no presente e em um futuro, talvez, nem tão distante.
O Brasil de 2021 está entranhado em O deus das avencas, na sensação de abandono e desolação de um país. Mas, ao longo das três novelas, Daniel Galera busca uma conciliação. Ou seja, formas de saída para este poço fundo em que caímos vertiginosamente, resultado em, acredito, seu trabalho mais otimista até o momento. Já um dos grandes livros do ano.
Gabriel Pinheiro é jornalista e produtor cultural, sempre gasta metade do seu horário de almoço lendo um livro. Seu Instagram é @tgpgabriel.