A máxima de que o lugar da mulher é onde ela quiser inclui, é claro, o cinema. Este que é, e sempre foi, majoritariamente dominado por homens, revela uma produção feminina fundamental para a história da sétima arte. Pensando nisso, o livro Mulheres atrás das câmeras: as cineastas brasileiras de 1930 a 2018 surge na tentativa de refletir a inquietação das organizadoras perante as poucas informações disponíveis sobre a história do cinema brasileiro feito por mulheres.
O projeto surgiu na Associação Brasileira de Críticos de Cinema, a Abraccine. Nasceu com a vontade de ser uma referência no assunto, trazendo um compilado e pensando com mais profundidade o que é o cinema brasileiro realizado por mulheres. O livro foi organizado por Camila Vieira, jornalista e doutora em comunicação, e por Luiza Lusvarghi, pesquisadora de cinema e audiovisual e integrante do Coletivo Elviras (coletivo de mulheres críticas de cinema).
Formato do livro
A história do cinema, tanto brasileiro quanto internacional, conta com iniciativas pioneiras que foram invisibilizadas e descontinuadas devido à desigualdade. Assim, a obra tenta dar conta do que ocorreu no Brasil entre 1930 e 2018 e “dedica artigos para mulheres diretoras com carreira mais sólida, ou seja, a partir de três longas metragens, e também traz textos temáticos”, explica Camila Vieira.
Para isso, foram incluídos artigos sobre o cinema documental, um glossário com diretoras especializadas em comédia e artigos que trazem a raiz da história da mulher no cinema brasileiro. Exemplo disso é Cléo de Verberena, primeira realizadora mulher, que dirigiu, produziu e atuou no filme O Mistério do Dominó Preto, de 1931. Em seguida, passa por outros nomes como Carmen Santos, produtora, atriz e criadora de estúdios e Gilda Abreu. Essa última roteirista e diretora do filme O ébrio, que foi sucesso depois do seu lançamento em 1946.
Pequeno dicionário das diretoras
Para tentar contemplar o máximo possível de produção feita por mulheres brasileiras, as organizadoras do livro adicionaram um dicionário com mini-biografias de diretoras que estrearam pelo menos um longa-metragem no circuito comercial. “Infelizmente, não deu para abarcar tudo, mas incluímos mais de 250 diretoras nesta parte”, comenta Camila. “Além disso, o lançamento vem sendo feito em festivais de cinema para que essa discussão venha à tona”, complementa a organizadora. O livro foi publicado pela editora Estação Liberdade e lançado na 23ª Mostra de Cinema de Tiradentes.
A maior dificuldade em produzir o livro, principalmente ao que tange ao dicionário de verbetes, foi localizar informações das diretoras. Como seria possível encontrar esses dados já que muitos deles se perderam e não foram documentados ao longo do caminho? Então, não foi possível achar tudo. “Neste ponto eu vejo essa obra como um livro em processo, ele já foi publicado, mas pode ser revisitado posteriormente porque podemos descobrir uma diretora que nunca ouvimos falar, uma produção desconhecida, ou algo do tipo”, explica Camila. “Então, eu encaro o livro como um primeiro passo, pois outras publicações podem surgir.
A presença da mulher negra
Desde o início da história do cinema no Brasil, apenas duas mulheres negras dirigiram longas metragens. A primeira foi há 34 anos. Em 1984, Adélia Sampaio dirigiu Amor maldito, filme baseado em uma história real na qual duas mulheres que se apaixonam e decidem morar juntas. A história segue com uma separação e uma morte trágica. Entretanto, mesmo estando inserida no contexto de uma indústria cinematográfica, a realizadora foi pouco prestigiada e o primeiro filme foi enquadrado no gênero pornochanchada.
Um dia com Jerusa
Agora, quem está sob os holofotes é Viviane Ferreira, segunda mulher negra a dirigir um longa de ficção no Brasil. O filme Um dia com Jerusa quebra o paradigma da mulher negra diretora invisibilizada durante décadas. No entanto, a diretora explica que esse dado precisa ser avaliado de diferentes perspectivas para compreender a complexidade da afirmação.
“Em primeiro lugar, se a gente comparar a mulher negra que dirigiu exclusivamente um longa de ficção com acesso a recursos, aí podemos comparar o feito ao de Adélia Sampaio”, explica Viviane. “Mas, por outro lado, não podemos perder de vista a perspectiva da produção de Beatriz Nascimento, por exemplo”. A historiadora, ativista e poeta colaborou no filme Ôrí, lançada em 1989. Viviane Ferreira também cita nomes como Sabrina Rosa, que fez em 2011 o filme Vamos fazer um brinde, ao lado de Cavi Borges. Nos dois casos é possível ver que as características do filme estão diretamente relacionadas às mulheres negras que fizeram parte do processo.
Outra mulher negra presenta em produções cinematográficas atualmente é Glenda Nicácio. Ela co-dirigiu com Ary Rosa os longas Café com canela, Ilha e Até o fim.
Em resumo, outras mulheres negras estão à frente de produções de longas metragens ou compartilham a direção com outras pessoas. “É importante colocar isso em perspectiva porque revela a vergonha que é o processo de distribuição de recursos para a produção de longas de ficção no Brasil”, conclui Viviane Ferreira e ainda acrescenta: “Ser a segunda mulher negra a dirigir um longa de ficção não é motivo de orgulho. Eu não me sinto mais ou menos cineasta do que todas as outras realizadoras negras que têm roteiros e histórias e não conseguem produzir. O lugar de exceção não é um lugar a ser comemorado, ele deve ser excluído”.
Confira a entrevista com Lea Garcia: