Novo livro do francês Philippe Besson, lançamento da Editora Vestígio, acompanha dois irmãos, após assassinato da mãe pelo próprio marido
Por Gabriel Pinheiro | Colunista de literatura
Dois irmãos. Ele tem 19 anos. Ela, 13. Uma ligação transforma irremediavelmente as trajetórias compartilhadas e particulares dos dois. Então, de uma linha para outra, a necessidade de dizer o indizível: “Papai acabou de matar mamãe”. Ou seja, um ato sem retorno que leva ao fim de um laço e à necessidade da reconfiguração de outro. “A gente não estava pronto para uma catástrofe desse tipo e dessa amplitude. Ninguém nunca está. É óbvio”. “Muito mais que um crime”, romance do francês Philippe Besson, é um lançamento da Editora Vestígio, com tradução de Arnaldo Bloch.
“Muito mais que um crime” mergulha em um acontecimento irreversível
Narrado pelo irmão, “Muito mais que um crime” tem início nesta ligação. Portanto, a partir dela, avançamos em uma série de processos – desde aqueles pessoais, pelos quais cada vítima de um trauma precisa passar de maneira particular, até aqueles que envolvem a justiça, da investigação ao tribunal – enfrentados pelos dois irmãos e o pequeno núcleo familiar que lhes resta, um avô. Se seguimos a trilha aberta por esse crime no presente e em seus desdobramentos futuros, Besson também se interessa pelo passado. Bem como, buscar ali algum tipo de resposta para esse acontecimento irreversível.
Se para o mundo exterior, para além das paredes que resguardam um lar, parecia um casamento comum com seus problemas cotidianos, este filho/irmão investiga e, pouco a pouco, encontra sinais de uma violência crescente. Primeiramente, simbólica, depois, consequentemente, física. Nesse sentido, episódios que, numa leitura superficial, não pareciam conter a semente daquela violência que viria a ser a definitiva. “A palavra feminicídio é sublinhada em vermelho no processador de texto que estou usando em meu computador enquanto escrevo, como outras palavras que não estão nos dicionários. Pensando bem, isso não é só um detalhe.”
Entre o público e o particular
Entre o afeto e a raiva, entre a culpa e a fúria, estes dois irmãos são jogados numa espiral, caindo fundo em direção a algo que mal podem colocar em palavras. “Estávamos irremediavelmente danificados”. Como um filho nomeia um pai assassino da própria esposa? É possível continuar a chamá-lo de pai? “Nossa dívida – se considerarmos que ser criado por um pai implica num débito – estava anulada”.
“Muito mais que um crime” é um relato duro e preciso dos efeitos do trauma. Tanto daqueles imediatos quanto daqueles que, a longo prazo, destroem tudo aquilo que restou. Dessa forma, Philippe Besson constrói uma voz narrativa que beira o documental, talvez pelo número cada vez mais frequente de episódios que se assemelham, em maior ou menor medida, com esta sua ficção. Em suma, este breve romance é poderoso ao alcançar o caráter público do crime, que deixa de ser um acontecimento particular, para se transformar em uma tragédia compartilhada: por uma família, por uma vizinhança, por uma comunidade, pela sociedade.
Encontre “Muito mais que um crime” aqui.
Gabriel Pinheiro é jornalista e produtor cultural. Escreve sobre literatura aqui no Culturadoria e também em seu Instagram: @tgpgabriel