Romance do senegalês Mohamed Mbougar Sarr é declaração furiosamente apaixonada aos livros e à literatura
Por Gabriel Pinheiro | Colunista de Literatura
Não é sempre, mas, às vezes, acontece de você ter um livro em mãos e, com poucas páginas, sentir de ter diante de si algo especial, uma obra realmente valiosa. Um jovem escritor senegalês, em tempos recentes, mergulha numa busca desenfreada pela obra-prima de um escritor africano apagado pela história da literatura – e por aqueles que parecem ter certo domínio sobre a maneira como essa história deve ser escrita. A busca pelo livro se transforma numa busca pelo seu autor e seu repentino desaparecimento, aparentemente, sem deixar rastros. Esta é uma apresentação simples que, já adianto, não dá conta da engenhosidade da obra que me acompanhou por um inesquecível período neste ano. “A mais recôndita memória dos homens” é o novo romance de Mohamed Mbougar Sarr, lançado pela Fósforo Editora com tradução de Diogo Cardoso.
Um labirinto magistralmente construído
O próprio romance nos coloca numa difícil situação quando diz algo tão certeiro e fundamental como: “Vou te dar um conselho: jamais tente dizer do que fala um grande livro. Ou, se você o fizer, eis a única resposta possível: não fala de nada. Um grande livro sempre fala de nada e, no entanto, tudo está lá”. O jovem protagonista, Diégane Faye, desenvolve uma obsessão febril pelo escritor T. C. Eliane e seu único livro publicado, “O labirinto do inumano”. Se o romance que ele procura diz de um labirinto, não é menos que isso que Mohamed Mbougar Sarr nos joga nesta obra magistral. Um labirinto onde todos os caminhos levam para todos os lugares possíveis e, consequentemente, para lugar nenhum. Numa viagem que parte de Paris para Amsterdam, toma um desvio para Buenos Aires para depois mergulhar no passado e no presente de Dakar.
O tempo é quase um conceito abstrato em “A mais recôndita memória dos homens”, onde passado e presente parecem se contaminar, influenciando um ao outro. Não é à toa. Entre as muitas questões presentes na obra, a herança colonial é uma das mais marcantes, a violência, o roubo, o anulamento de culturas, de povos. São feridas abertas que seguem ardendo através dos tempos.
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Tomando esse título singular da obra de Roberto Bolaño, “A mais recôndita memória dos homens” consegue apontar para diferentes caminhos mas, sem dúvidas, aquele mais bonito e intenso é o caminho que nos leva para o pensamento acerca da própria literatura e do fazer literário. O romance de Mohamed Mbougar Sarr é, acredito, a mais apaixonada declaração de amor à literatura que tenho contato desde a leitura de “Os detetives selvagens”, de Bolaño. E essa declaração é tão potente e transformadora justamente por não colocar a literatura em um pedestal, mas como um fazer permeado tanto pelo prazer, quanto pela dor, tanto pelo amor, quanto pelo ódio. “Nossa vida é isto: tentar fazer literatura, sim, mas também falar dela, pois falar dela significa mantê-la viva, e enquanto ela for viva a nossa vida, mesmo inútil, mesmo tragicamente cômica e insignificante, não estará perdida de todo”.
Plágio, influência, apropriação
T. C. Elimane desaparece sem deixar vestígios após uma denúncia de plágio cair como uma bomba na cena literária francesa na década de 1940. Optando pelo silêncio, o escritor se recolhe – assim como recolhe todos os exemplares disponíveis em livrarias de “O labirinto do inumano”. Aqui, Mohamed desenvolve uma discussão intensa acerca das ideias de influência e apropriação, inspiração e plágio. De onde vem a originalidade? Existe livro, existe literatura original em um mundo povoado por um sem fim de obras literárias? O que se esconde por trás do ataque furioso de uma intelectualidade branca a um jovem e singular autor negro na primeira metade do século XX?
Clássico contemporâneo
O romance é habitado por personagens inesquecíveis, reais ou imaginários, originais ou inspirados em pessoas reais. Seja o seu protagonista, Diégane Faye, ou a poeta Siga D. Seja o escritor argentino Ernesto Sabato, o polonês Witold Gombrowicz ou as irmãs Victoria e Silvina Ocampo e seus salões literários. Ou, é claro, o misterioso T. C. Elimane – figura inspirada na história real do autor maliano Yambo Ouologuem – e o possível tesouro escondido nas páginas de “O labirinto do inumano”.
Mohamed Mbougar Sarr criou um verdadeiro clássico contemporâneo. Desde já, um dos grandes lançamentos deste ano, onde o protagonista, na verdade, talvez seja um livro, que carrega um labirinto em seu título, em suas páginas e nas inúmeras histórias que foram inventadas – ou não – a partir do desaparecimento de seu autor. Um labirinto delicioso para os amantes da literatura onde, muito mais sedutor do que encontrar uma suposta saída, é deixar se perder e, quem sabe, nunca mais sair dali.
Se é labirinto, por outra chave, também é uma cartografia de um país imaginário nem tão imaginário assim. Uma pátria habitada por muitas pessoas, incalculáveis. Por mim, estou certo, e acredito que por você que me lê também. “Então escreverei como alguém que trai o seu país, isto é, como alguém que escolhe como território não o país natal, mas o país fatal, a pátria para a qual a nossa vida profunda nos destina desde sempre. (…) Então que pátria é essa? Você a conhece: é a pátria dos livros, é óbvio, dos livros lidos e amados, dos livros lidos e desprezados, dos livros que sonhamos escrever.”
Encontre “A mais recôndita memória dos homens” aqui.
Gabriel Pinheiro é jornalista e produtor cultural. Escreve sobre literatura aqui no Culturadoria e também em seu Instagram: @tgpgabriel.