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Literatura

“Busco uma visão poética do mundo”, entrevista com Mia Couto no Fliparacatu

Mia Couto durante a Fliparacatu. Ele é branco, tem cabelos grisalhos e cerca de sessenta anos. Usa óculos e apoia a mão no queixo, com expressão séria.

Mia Couto durante a Fliparacatu. Foto: Ranch Films

Homenageado no Fliparacatu e vencedor do Prêmio Camões, Mia Couto conversou com o Culturadoria

Por Gabriel Pinheiro | Colunista de Literatura

O escritor moçambicano Mia Couto esteve em Minas Gerais como homenageado na primeira edição do Fliparacatu – Festival Literário Internacional de Paracatu. Dono de uma prosa poética singular, o autor lançou um novo volume de contos pela Companhia das Letras, “As pequenas doenças da eternidade”, onde escreve sobre a pandemia e sobre graves conflitos atuais em sua terra natal, mas também sobre a esperança, a ancestralidade e a construção de um futuro comum. 

De uma simplicidade marcante, Mia circulou pelos espaços do Festival encantando o público presente, aberto para fotos, autógrafos e, principalmente, uma troca de palavras com aqueles que o abordavam. Ele conversou com o Culturadoria, entre outros temas, sobre a maneira como enxerga o mundo e um pouco do processo de escrita dos contos presentes neste novo trabalho. Confira:

Quando penso em sua literatura, uma palavra me vem logo à cabeça: encantamento. Literatura é um jogo de encantamento?

Não tem que ser sempre, mas é isso o que eu procuro. Quando estou a ler outros autores, procuro ficar encantado logo no princípio, percebo se está ali aquilo o que eu quero, uma espécie de visão poética do mundo. Mesmo que o escritor esteja muito longe da poesia, que ele pense estar afastado desse mundo, mesmo que tenha uma prosa muito escorreita – sem defeitos, perfeita – talvez tenha ali esse sentimento poético. Esse sentimento é o que me traz essa visão de encantamento, que me transporta para aquilo que foi o nascimento da literatura dentro de mim, quando eu ainda era um menino longe de ter a possibilidade de ler um livro, mas já o encontrava no modo como a minha mãe e o meu pai me contavam histórias, aquele momento que, de repente, fazia que o mundo deixasse de existir.

Como manter o olhar maravilhado da infância em tempos tão difíceis? Tanto na vida comum quanto na escrita literária.

Acho que é uma coisa que podemos fazer conscientemente. Eu acho que o que nos afasta deste estado de infância é o medo de perder certezas. Nós temos que construir uma visão profundamente consolidada, sedimentada dentro de nós, é isso o que nos converte em adultos. Quando adultos, a gente tem a ideia de que já entendemos, já percebemos o que é o mundo e quem são os outros. Já a criança está mais aberta, está disponível para a ideia de que o mundo exista de diferentes maneiras. A criança fica espantada, fica encantada. Se fizermos esse trabalho, tentar que o medo desapareça de dentro de nós, podemos ficar mais abertos para perceber, afinal, que aquilo que pensávamos saber talvez não seja exatamente assim. Entender e ter a disponibilidade para aceitar que, de repente, temos que aprender tudo de novo, é um modo de nos conectar com a infância.

O que há de biólogo no Mia escritor?

Eu nem sei onde começa uma parte e termina outra. Eu acho que essa fronteira muda todos os dias, eu faço com que ela se mova. Mas eu vejo na biologia muito daquilo que eu procuro na poesia, que é encontrar não exatamente as respostas, mas as perguntas que eu preciso saber. Para saber quem eu sou, quantos eu sou ou quem eu sou no plural. 

Há coisas que a biologia aponta, por exemplo, essa diversidade interior e exterior, a maneira como há conversas silenciosas entre nós, como que nós não terminamos em nossa própria pele – não há essa fronteira clara entre onde acaba o corpo e onde começa o resto – ou, ainda, como ela nos mostra que a terra que habitamos, onde pisamos, é também uma entidade viva. Isso é algo muito próximo da visão que eu quero ter da poesia, mostrar que o mundo tem esse diálogo permanente e invisível e como que eu posso fazer parte dessa conversa.

Gostaria de saber sobre o seu trabalho na escrita de contos. Acho fascinante como você parece construir universos completos em textos de 3 ou 4 páginas…

Esse é o grande desafio do conto. O conto é como uma espécie de um pequeno romance, um romance condensado. Ele tem que ter, como a anedota, alguma coisa que surpreenda, que faça com que aquele que está a ler realmente perceba que existia um mundo ali, oculto, que de repente se revela. 

Ontem, eu estava aqui no Festival e chegou uma mensagem desta revista – onde estou publicando estes contos que foram reunidos neste livro novo – me dando um prazo até amanhã para entregar uma nova história curta. E eu não tinha nada escrito. Talvez como resultado do cansaço em pensar em algum tema, eu retornei à Guerra da Ucrânia, quando fiz uma espécie de carta ao Putin. E dali, dessa carta, eu peguei uma espécie de núcleo que converti numa história. A história de uma vizinha que vai à casa do seu vizinho que sabe a língua russa. Uma senhora muito idosa, ele ainda mais idoso. Ela vai ali para que ele traduza uma carta, enquanto ela a dita. E nesse processo, de repente entende naquele momento, um homem tão velho, uma mulher tão velha também, que há alguma coisa entre os dois que eles não percebiam existir. 

Provavelmente eu vivo tão disposto a escutar sugestões de histórias, quando as pessoas vêm até mim para tirar uma foto, por exemplo, eu quero que elas me digam qualquer coisa, quero que elas sejam pessoas – não apenas fãs. Isso é muito enriquecedor. Não é um mérito meu. As pessoas me dizem qualquer frase, qualquer coisa que me faz perceber que aquilo que parecia uma coisa cotidiana, apenas algo do dia-a-dia, talvez tenha uma espécie de transcendência que me alimenta.

* O Fliparacatu é patrocinado pela Kinross, por meio da Lei Rouanet. O Culturadoria visita o festival a convite do patrocinador.

Gabriel Pinheiro é jornalista e produtor cultural. Escreve sobre literatura aqui no Culturadoria e também em seu Instagram: @tgpgabriel.

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