Publicado pela Todavia, romance de Mariana Salomão Carrara como o luto, a maternidade e a possibilidade de reconstrução de maneira poética e surpreendente.
Por Gabriel Pinheiro | Colunista de Literatura
Em cerimônia realizada no dia 27 de novembro de 2023, a escritora paulista Mariana Salomão Carrara recebeu o Prêmio São Paulo de Literatura de Melhor Romance, pelo livro “Não fossem as sílabas do sábado”. Promovido pela Secretaria da Cultura, Economia e Indústria Criativas do Estado de São Paulo, esta é a maior premiação literária individual do país. São R$200.000 para os dois vencedores, nas categorias de Melhor Romance e Melhor Romance de Estreia – na segunda categoria, o premiado foi Alexandre Alliatti, com o livro “Tinta branca”.
Confira abaixo a resenha de “Não fossem as sílabas do sábado”, publicado pela Todavia Livros.
Uma tragédia
Poderia ser um sábado qualquer. Apenas mais um dia no fluxo contínuo das semanas. Um dia após o outro. Mas não. Ana, enquanto tenta carregar até em casa um quadro que parecia mais pesado que ela própria, guarda uma notícia para o marido, André. Está grávida. Poderia ser um sábado qualquer, mas André, que iria em direção à mulher, ajudá-la a carregar o fardo, mal ultrapassa o portão do prédio em que vivem. Uma existência é interrompida, sem aviso, repentinamente. E junto dela, toda uma promessa de existência compartilhada. “Faz mais de nove anos que estou presa dentro daquela meia hora”.
Antes de narrar o evento que leva para sempre o marido, Ana começa o romance descrevendo um encontro na sala de espera do Instituto Médico Legal. Ela observa uma mulher em ruínas. Uma mulher que era inteira desfiguramento. Ela é Madalena. Numa tragédia que envolve duas pessoas mortas, são duas as companheiras que choram os próprios lutos. Ana e Madalena, duas vizinhas que não se conheciam, nunca haviam trocado uma palavra. O acontecimento obriga as duas mulheres a se olharem e a reconhecerem, em cada uma, um lado de uma tragédia compartilhada.
O encontro entre duas mulheres
Mariana Salomão Carrara constrói em “Não fossem as sílabas do sábado” uma sensível, dolorosa e surpreendente dinâmica entre as duas mulheres. Entre a culpa e a dor, entre a fúria e o consolo, elas se atraem e se repelem, se acusam e buscam uma na outra um apoio para seguir em frente. Ana se vê inesperadamente sozinha, carregando o peso do luto em paralelo ao peso de uma gravidez. Os dois, dia após dia, parecem crescer, parecem mais pesados, mais intensos. Madalena se torna uma presença nessa caminhada que, então, parecia solitária. Ao longo da gravidez e após o nascimento de Catarina, a criança órfã do pai, as duas mulheres traçam juntas uma história comum.
Narrado inteiramente por Ana, o romance caminha entre um intenso e doloroso fluxo de consciência e uma prosa marcadamente poética. Mariana, por vezes, rompe com as barreiras dos pontos finais e das vírgulas, transmitindo no texto todo um turbilhão de sentimentos – uns novos, outros velhos conhecidos – que irrompem do interior da protagonista. A escritora parece dedicar um tempo especial para cada frase, para cada cena que constrói aqui. Suas palavras parecem buriladas ao máximo, extraindo a beleza, a poesia, de cada uma delas na construção de imagens, na tradução de sentimentos em texto. “Vai ver já não seria possível evitar porque uma vida inteira de ponta-cabeça, o único sentido certo é pra baixo”.
Os estágios do luto
Construído em pequenos capítulos, o romance segue de maneira não linear, do presente ao passado, intercalando os diversos estágios do luto sofrido pela protagonista enquanto acompanha o crescimento da filha. Há um capítulo em especial, de uma página apenas, construído, predominantemente, por frases iniciadas por “Se”. É a culpa, o remorso que acompanha o luto. Os infinitos universos possíveis atrás de apenas uma sílaba, “Se”.
Mariana Salomão Carrara mergulha “Não fossem as sílabas do sábado” em temas como o luto, a maternidade – e a solidão que pode a acompanhar – a possibilidade de reconstrução de si – mesmo após a mais impensada das dores – e a amizade. Num olhar sensível para esses temas, a autora desenha uma protagonista que parece saltar das páginas que não mais a encerram. É viva, como feita de carne, osso e sangue e resiliência. “Era preciso tirar toda a poeira que eu tinha acumulada em mim, e quem sabe ainda encontrassem uma mulher, uma mãe”.
Encontre “Não fossem as sílabas do sábado” aqui
Gabriel Pinheiro é jornalista e produtor cultural. Escreve sobre literatura aqui no Culturadoria e também em seu Instagram: @tgpgabriel (https://www.instagram.com/tgpgabriel)