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Literatura

Novo romance de Márcia Tiburi é um thriller feminista que vislumbra um futuro possível

Márcia Tiburi é branca, de cabelo grisalho raspado. Ela aparenta ter cerca de 55 anos e usa óculos de armação preta e grossa. A posição da boca e das mãos parecem que ela estava falando quando a foto foi tirada.

Márcia Tiburi. Foto: Fabiana Reinholz

“Com os sapatos aniquilados, Helena avança na neve”, de Márcia Tiburi, apresenta uma complexa protagonista numa série de embates ferozes frente ao patriarcado

Por Gabriel Pinheiro | Colunista de Literatura

Uma mulher está sozinha em um quarto. Uma xícara de chá esfria num cômodo frio. Nas mãos, uma faca e um lápis, que é apontado. Helena está em Paris, é ali uma estrangeira. “Estrangeira, como quem habita uma dobra instaurada entre épocas, ela se sente em casa no clima abaixo de zero e se concentra em sua tarefa”. Helena, na verdade, é uma estrangeira desde muito antes, desde a infância, na casa onde cresceu no sul da América do Sul – e de onde foi retirada de maneira trágica. Assim, um caminho longo e confuso foi percorrido pela mulher até ali. “Com os sapatos aniquilados, Helena avança na neve” é o novo romance de Marcia Tiburi, lançado pela Editora Nós.

Em Paris, Helena se hospeda na casa de Chloe, uma mulher solitária que tem como família apenas a neta, Catarina, após a morte de filha – um suposto suicídio – sob circunstâncias misteriosas. Apesar do silêncio de Helena, pouco a pouco as duas mulheres se aproximam, na medida em que episódios vividos no passado – que seguem como feridas abertas no presente – parecem criar um vínculo profundo entre elas. Dessa forma, tal ligação tem como base o patriarcado e a violência – em suas mais diferentes formas e possibilidades – contra a mulher.

capa de "Com os sapatos Aniquilados Helena Avança na Neve". Editora Entre Nós
Capa de “Com os sapatos Aniquilados Helena Avança na Neve”. Editora Entre Nós

A poesia do título “Com os sapatos aniquilados, Helena avança na neve” parece contrastar com a brutalidade daquilo que Márcia Tiburi narra neste novo livro. Mesmo numa prosa elegante e fluida, são muitas as imagens de violência que Tiburi expõe aqui, demandando, assim, um tempo de leitura. É uma violência que nos choca não apenas pela construção enquanto literatura, mas por entendermos que o texto traz em suas linhas e entrelinhas uma realidade cotidiana. Portanto, não é apenas literatura, não é apenas ficção.

Os homens que não amavam as mulheres

São muitas as figuras masculinas em “Com os sapatos aniquilados, Helena avança na neve”. Pais, maridos, irmãos, policiais, delegados, pastores. Figuras de autoridade e justiça. Figuras detentoras de uma suposta segurança: tanto dentro quanto fora das quatro paredes que parecem sustentar um lar. Não é o que encontramos nas páginas do romance. Cada um desses homens é um agressor, um abusador e, por fim, um assassino em potencial. Assim, a barbárie do feminicídio é um projeto em pleno funcionamento e em plena expansão, tanto nos rincões de um Brasil percorrido por caminhão, quanto numa das principais cidades do capitalismo contemporâneo global.

Construído como uma espécie de thriller – um thriller feminista, nos aponta, de maneira certeira, a orelha do volume – o romance nos seduz por aquilo que parece esconder, por aquilo que está sempre por revelar na página seguinte. Isso porque Helena é uma personagem complexa, de construção intrincada, um verdadeiro quebra-cabeça literário. De maneira alegórica e poética, a protagonista parece trazer em si um universo de mulheres.

Imaginar um futuro possível

Se é um livro sobre o domínio patriarcal sobre corpos, comportamentos e, sobretudo, o direito de viver ou não imposto às mulheres, “Com os sapatos aniquilados, Helena avança na neve” é também um livro sobre a resistência e a sororidade. Portanto, numa trajetória marcada pela dor e pela tragédia, Helena cruza com uma série de mulheres que a transformam e são transformadas a partir desses encontros. Se, num primeiro momento, a realidade na qual as personagens estão inseridas parece pintada de tons pessimistas, Marcia Tiburi desenha um futuro de possibilidades contidas no apoio mútuo, nas potências da sororidade. Por fim, em certo momento, lemos uma frase emblemática que parece ser uma síntese do romance: “o patriarcado está morto”. Não, ele não está. Mas imaginar uma realidade onde ele esteja, talvez seja um primeiro passo para transformarmos a nossa própria realidade.

Encontre “Com os sapatos aniquilados, Helena avança na neve” aqui.

Gabriel Pinheiro é jornalista e produtor cultural. Escreve sobre literatura aqui no Culturadoria e também em seu Instagram: @tgpgabriel.

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