Em novo livro, José Falero explora a crônica e reforça o talento como observador sagaz das fraturas entre centro e periferia
Por Gabriel Pinheiro | Colunista de Literatura
José Falero é autor de um dos meus romances favoritos de 2020, “Os supridores”. Nele, acompanhamos Pedro e Marques, amigos e colegas de trabalho em um supermercado na região central de Porto Alegre, tentando mudar de vida. Na sequência do romance, busquei quase de imediato por seu primeiro livro publicado, o volume de contos “Vila Sapo”. Suas narrativas curtas acontecem e são inspiradas no cotidiano da Vila Sapo no bairro Lomba do Pinheiro, local onde vive o autor.
Qual a minha expectativa com o lançamento deste “Mas em que mundo tu vive?”, onde o autor se aventura em um gênero tão importante na literatura brasileira: a crônica? Neste novo livro, José Falero dá mais um passo no desenvolvimento de um trabalho muito próprio, no raio-x revelador das fraturas entre centro e periferia – no caso, de Porto Alegre, mas com suas diversas interseções com outras capitais e regiões brasileiras.
Um mergulho na periferia de Porto Alegre
Em um texto, José Falero diz: “A rotina é uma farsa. Porque os dias são todos inéditos, sabia?”. Essa é uma certeza que tenho após a leitura das crônicas de “Mas em que mundo tu vive?”. Passam por suas páginas uma série de situações e experiências vividas e observadas pelo escritor. Estas experiências são descritas no presente do texto, quando ele nos diz, por exemplo, da sua visita ao centro de Porto Alegre deserto e, por isso, mais triste durante a pandemia. E também no passado, quando ele rememora suas primeiras experiências de trabalho.
Falando em trabalho, é justamente nele que está uma das chaves principais de seus escritos aqui. Falero escreve sobre a sua precarização, realidade constante de grande parcela da população brasileira. Sobretudo aquela às margens: das jornadas extenuantes à supressão dos direitos trabalhistas. “O leitor por acaso já carregou cimento? Há algo curioso a respeito disso: quanto mais sacos se carrega, tanto mais parece pesar cada um deles.”
Um livro de perguntas e confidências
Por diversos momentos José Falero se vira para o leitor, questionando-o. Por vezes ele conversa conosco em um tom de confidência, expondo com muita franqueza e coragem sua vida pessoal. Ao dizer de si, ele traz uma reflexão sensível sobre a depressão, inserindo-a dentro do contexto político-social da periferia. Um espaço onde, entre as suas muitas privações, está a do cuidado com a saúde mental. “Só Deus sabe o tamanho do esforço que tenho que fazer para que não se esvaia de mim toda e qualquer alegria, para que não se evapore o meu sorriso, para que eu possa conservar em mim toda a doçura”.
O Brasil nas crônicas de Falero
Cabe o Brasil inteiro nas crônicas de “Mas em que mundo tu vive?”. Faleiro diz, por exemplo, da falácia da meritocracia e da hostilidade sentida por ele no ambiente acadêmico. Ele ainda escreve sobre a invisibilidade social, a violência policial contra a população negra e periférica e o racismo. Este último é outro ponto-chave aqui. É muito interessante testemunhar a tomada de consciência do próprio autor como homem negro: “Compreende-se, por fim, toda uma série de eventos da vida pregressa para os quais não tinha sido possível encontrar explicação razoável”.
Na percepção de si como parte contínua de uma ancestralidade negra em um país fundamentado sob alicerces racistas, Falero também discute o colorismo: “Sei bem que quanto mais retinta a pele de uma pessoa, maior será o racismo contra ela. Só peço que, por favor, não me chamem de branco.”
São muitas as situações absurdas que ele narra. A voz de nojo de uma patroa ao pronunciar a palavra “assalariados”. Noutra narrativa, dois pedreiros recebem a missão de derrubar uma casa em ruínas para uma obra – para descobrirem ao final da jornada, que uma retroescavadeira seria levada ao canteiro no dia seguinte para completar o serviço, logo, tornando esta extenuante missão inútil. “Vem cá, tchê, mas em que mundo tu vive? Vocês já tavam aqui, eu ia ser obrigado a pagar o dia de vocês (…). Tu achou que eu ia te pagar pra passar o dia sentado, é?”
Se trata, muitas vezes, com bom humor situações como esta – uma ironia fina de quem se cansou de presenciar episódios semelhantes – ele sabe o absurdo que elas representam. A ironia de quem já está calejado.
Um texto vivo e mutante
José Falero nos fisga com sua prosa, no encadeamento entre os fatos – vividos, imaginados – de sua história pessoal. Ou seja, daquilo que traz na memória e daquilo que seu olhar captura ali, no hoje. Há momentos em que ele cria uma tensão que não nos deixa largar o livro: soltando pistas sobre um acontecimento que só será revelado em seus momentos finais, nas últimas linhas. Que baita contador de histórias.
Tudo isso em um texto que é vivo, é mutante. Caminha da língua falada nas ruas, das gírias ouvidas na vizinhança, à norma culta. Percebemos também a forte influência do rap em sua formação e em sua escrita. Não à toa, Mano Brown e Os Racionais são citados com frequência no livro. Sobre Brown, Falero pergunta se seus versos podem atingir tão em cheio o leitor como fazem com ele.
Eu faço essa pergunta sobre suas crônicas. Impossível passar incólume por elas. Logo, há quem vai se identificar com aquele Brasil descrito por José Falero. E há quem verá exposto em suas páginas o seu próprio privilégio. Como um eco, a pergunta de seu título martela em nossa cabeça no decorrer da leitura: mas um eco que, ao invés de ficar mais baixo, só faz aumentar.
Encontre “Mas em que mundo tu vive?” aqui.
Gabriel Pinheiro é jornalista e produtor cultural, sempre gasta metade do seu horário de almoço lendo um livro. Seu Instagram é @tgpgabriel (https://www.instagram.com/tgpgabriel/)