O escritor Jeferson Tenório chega a BH nesta quinta, para inaugurar a edição 2024 do projeto Sempre um Papo, que será também um desagravo aos ataques a “O Avesso da Pele”
Patrícia Cassese | Editora Assistente
Nas últimas semanas, uma discussão tomou conta não só do meio literário – posto que se acendeu em torno de um livro, “O Avesso da Pele”, de Jeferson Tenório -, mas, também, e com muita força e clamor, da sociedade como um todo. Tudo começou a partir da divulgação de um vídeo no qual uma diretora de uma escola no Rio Grande do Sul criticava a citada obra, pedindo, ao governo federal, a retirada dos exemplares enviados à instituição, sob a alegação de ele conter “vocabulário de baixo de nível”. A partir da repercussão, outras instituições de outros estados replicaram o comportamento.
Em uma reação diametralmente oposta, as redes sociais foram invadidas por pessoas comuns e formadoras de opinião, que saíram em defesa da obra e do autor. Com toda a movimentação, um fenômeno se deu: as vendas de “O Avesso da Pele” registraram um aumento de nada menos que 400% na Amazon. No último dia 8, ninguém menos que Chico Buarque de Hollanda gravou um vídeo lendo um trecho do livro, editado pela Companhia das Letras. à postagem, foi acoplada a hashtag #EmDefesaDosLivros, que, na verdade, já vinha sendo usada.
Reação em cadeia
Hoje, é a vez de o meio literário – leitores inclusos – se manifestarem a favor de “O Avesso da Pele”. É que Jeferson Tenório desembarca em BH para dar início à programação do projeto Sempre um Papo 2024, em bate-papo com o jornalista e escritor Afonso Borges, no Teatro José Aparecido de Oliveiro, na Biblioteca Estadual, na Praça da Liberdade. Desta vez, a edição, portanto, não tem como epicentro o lançamento de um livro, mas, sim, servir de um ato, que tem como escopo o repúdio de qualquer forma de censura. Para saber mais sobre os últimos acontecimentos, a reportagem do Culturadoria conversou com o próprio Jeferson Tenório.
Mas antes de mostrarmos os tópicos da entrevista, vale colocar em repasse alguns detalhes da movimentação em torno da obra “O Avesso da Pele”. Assim, é preciso ressaltar que o livro entrou no Programa Nacional do Livro e do Material Didático – PNLD em 2022, juntamente com outros 530 títulos. Após a celeuma, o Ministério da Educação esclareceu que O MEC esclareceu que são os professores que escolhem livros a serem adotados em sala de aula, e não o MEC.
Desse modo, a pasta envia obras para escolas apenas mediante solicitação dos próprios educadores. “A escolha das obras literárias a serem adotadas em sala de aula é feita pelos educadores de cada escola a partir do Guia Digital, no qual as obras integrantes do programa estão listadas para conhecimento de professores e gestores”, disse o MEC, na nota.
Companhia das Letras
A Companhia das Letras, por seu turno, publicou um texto, na página da editora na internet, no qual condena as críticas. “A retirada de exemplares de um livro, baseada em uma interpretação distorcida e descontextualizada de trechos isolados, é um ato que viola os princípios fundamentais da educação e da democracia. (Tal qual) empobrece o debate cultural e mina a capacidade dos estudantes de desenvolverem pensamento crítico e reflexivo”, diz o conteúdo.
Repúdio
Inicialmente, o Culturadoria pediu a Jeferson Tenório a opinião do autor em relação aos diversos esses atos, Brasil afora, referentes ao repúdio à censura de livros, como vem acontecendo com “O Avesso da Pele”. “Sim, esses atos têm acontecido. Essa conversa (do Sempre Papo), por exemplo, é também um ato e uma reflexão, não só sobre “O Avesso da Pele” mas sobre todo o processo de censura que tem tomado conta do Brasil, bem como também em alguns lugares do mundo”. Para o escritor, é um momento oportuno para refletirmos sobre o que está acontecendo. “Sobre o que está levando prefeitos e governadores a tomarem medidas de censura como essas”.
Confira, a seguir, os trechos do bate-papo do Culturadoria com Jeferson Tenório.
Estrutura capitalista
Jeferson Tenório reflete que, na sua opinião, atos e acontecimentos que apontam um retrocesso na sociedade fazem parte de toda a estrutura capitalista na qual vivemos. “O fascismo e capitalismo estão intimamente ligados. O capitalismo só existe com crises, então, você precisa criar crises e resolvê-las depois. Assim, o fascismo, na verdade, é um efeito colateral dessas crises”.
O escritor também lembra que, historicamente, períodos nos quais movimentos de luta pela igualdade recrudescem, o fascismo se manifesta. “Sejam lutas de gênero, sejam elas econômica, para o capitalismo isso não é bom. Não é bom pensar em uma isonomia, ter uma sociedade igualitária. Desse modo, (para a sociedade capitalista), é preciso criar alguns mecanismos de freio”. Ele se refere a iniciativas para que tais lutas não logrem êxito, alcançando, de fato, o que, para a maioria da população, seria o cenário ideal. “Assim, o fascismo acaba servindo, então, como um instrumento, uma estratégia, para justamente evitar que hajam esses movimentos de progresso”.
Pautas urgentes
Nesse sentido, Jeferson Tenório reflete que toda vez que a sociedade parece avançar em relação a pautas como aborto, legalização de certas drogas, uniões estáveis homoafetivas ou em medidas de combate ao racismo e, tal qual, ao machismo e à violência doméstica, entram em cena tais recursos e mecanismos. “Que são esses discursos, esses argumentos que vão justamente tentar descredibilizar essas pessoas, desumanizar essas pessoas”, pontua, referindo-se aos que estão à frente desses movimentos ou mesmo àqueles cujos discursos se afinam com tais questões.
“Que é o que tem acontecido especificamente com meu livro. Então, você utiliza um discurso de que é um livro que tem um conteúdo impróprio para estudantes, pega ali palavrões e cenas de sexo, e diz que isso é o livro. Ou seja, é uma forma de deslegitimar o texto que, na verdade, está propondo uma outra reflexão. Assim, acho que a coisa é mais ampla nesse sentido”.
Avanços e recuos
Para Jeferson Tenório, esses avanços e recuos parecem fazer parte da estrutura capitalista em que a gente vive. “Então, o que há de novo? É que me parece que estamos nos aproximando do fim das coisas. Entendo que esses movimentos fascistas, eles têm data de validade. A questão é o que a gente vai precisar pagar, quanto custa a gente passar por um período de censura, de regime autoritário. Porque muitas vezes, esses momentos custam vidas. Então, essa é a grande preocupação”.
Já que o próprio escritor falou em “avanços”, a reportagem pediu para que ele se detivesse mais nestes aspectos. “Acho que há avanços, a gente tem avanços, não há como negar que hoje em dia você tem alguns direitos conquistados. A própria democracia é um direito conquistado. Embora tenha sofrido alguns ataques, se manteve em pé. A questão é que o fascismo, ele vai ganhando novos formatos e vai se sofisticando”. Ou seja, para Jeferson, a grande questão, a grande luta, hoje, é justamente conseguir perceber o que, contextualiza, está nas entrelinhas”.
“Assim, o que está ali, no não dito. Esses gestos que são feitos e que, à primeira vista, não parecem autoritarismo. Por exemplo, o argumento de recolher os exemplares (de “O Avesso da Pele”) sob a alegação de se fazer uma avaliação pedagógica. Aí você tem um discurso que não diz que é censura, mas a verdade é que está ali, nas entrelinhas, que se trata de uma censura, já que os livros já foram anteriormente avaliados pelo Ministério da Educação”. Sendo assim, Jeferson não acredita que se possa falar em expectativas de ver o fim do fascismo a curto prazo. “Me parece que ainda precisamos resolver muitas e muitas questões fundamentais. Questões que passam capitalismo e que passam pela desigualdade”.
Como recebeu o bombardeio
Perguntado sobre como o teor das críticas recebidas lhe impactou, Jeferson Tenório responde que, no primeiro momento, nos primeiros dias, só ficou tentando entender o que estava acontecendo. “Foi algo que de fato me pegou de surpresa. Estava terminando o meu próximo livro, portanto, estava recolhido. E quando vídeo da professora de Santa Cruz do Sul começou a circular.. O modo como ele foi divulgado, os ataques que comecei a receber… Realmente fiquei bastante abalado, nos primeiros dias”.
Onda de apoio e solidariedade
Só que, nos momentos seguintes, uma onda de apoio se fez intensa. “Quando começaram a vir as reações, as notas de solidariedade e de repúdio, de entidades, de amigos, colegas, professores, alunos, escritores… Enfim, de uma série de pessoas e entidades, comecei a entender que os ataques tinham, na verdade, esse teor político, essa cooptação política. Então, não tinham a ver com o Jeferson pessoa, mas com o que o Jeferson escritor representa para essas pessoas. Ou seja, é um processo interno de separar quem é o Jeferson pessoa e quem é esse o Jeferson escritor que acabou virando alvo do que tem a ver com essa cooptação da política”.
Aumento nas vendas
Indagado sobre o aumento avassalador nas vendas de “O Avesso da Pele”, após a eclosão da polêmica, Jeferson o credita a “um efeito colateral de toda censura”. “Veja, quando você restringe ou proíbe alguma coisa, evidentemente atiça mais a curiosidade das pessoas. Assim, mesmo aquelas que concordam com o argumento de que o livro é impróprio, vão atrás (da leitura), por curiosidade”. Mas, no âmbito geral, ele diz ver o crescimento do interesse com positividade. “Porque mostra que há uma resposta rápida de toda uma mobilização. Uma reação coletiva bem importante”.
Por outro lado, ele lamenta que este fenômeno demonstre que ainda é preciso fazer o que ele nomina de “um trabalho ainda muito forte, muito grande” em relação à leitura. “Porque é um fenômeno que a gente tem que entender. Será que a pessoa depende justamente de uma polêmica para buscar um livro? Assim, parece que a leitura só é válida quando há algo extraordinário acontecendo, quando há algo que foge, o ponto fora da curva. Então, por um lado fico feliz com a venda dos livros, pois ele está chegando a muitos lugares. Mas, por outro, fico receoso de que haja muitas pessoas que acabam indo atrás dos livros justamente quando há esses embates, essas violências que acontecem com a retirada de livros da sala de aula”.
Novo livro
Perguntado sobre o novo livro que está em processo de escrita, Jeferson despista. “Olha, minha editora tem me pedido para não comentar muito sobre o livro, mas o que posso dizer é que se passa num ambiente acadêmico. Assim, traz a história de estudantes que entram na universidade pelo sistema de cotas. A ideia é narrar a história deles dentro da universidade. Se em ‘O Avesso da Pele’ havia uma atmosfera da escola de ensino básico, fundamental, esse vai para dentro da universidade. Desse modo, visa trazer discussões que julgo importantes”.
Outras frentes
Além do novo livro, Jeferson Tenório tem atuado como roteirista de uma série cujas filmagens devem ter início no ano que vem. “Então, este ano estou trabalhando no roteiro, para uma plataforma de streaming cujo nome não posso dizer. Assim, estou me aventurando nessa série que não tem a ver com meus livros, é uma série original. Estou bastante entusiamado para ver o resultado”, assume o gentil entrevistado.
Serviço
Sempre Um Papo recebe Jeferson Tenório
Quando. Dia 14 de março, quinta-feira, 19h30
Onde. Teatro José Aparecido de Oliveira (Biblioteca Pública Estadual de Minas Gerais – Praça da Liberdade)
Informações: Página oficial do Sempre um Papo
A entrada é gratuita, mediante lotação do espaço. O Sempre Um Papo é viabilizado por meio do patrocínio da Cemig e da Emgea. Isso, via Lei Federal de Incentivo à Cultura do Ministério da Cultura, Lei Rouanet.