Livro de Elizabeth Saxay Holding, “Fachada” expõe a hipocrisia, o machismo e o racismo da sociedade patriarcal do início do século XX
Por Gabriel Pinheiro | Colunista de Literatura
“Fachada”, de Elisabeth Sanxay Holding, tem como protagonista Lucia Holley, uma pacata dona-de-casa norte-americana nos anos 40. Mais que um suspense bem construído, o romance traz um retrato revelador de uma sociedade conservadora nas aparências. Elisabeth expõe a hipocrisia, o machismo e o racismo que integravam o “sonho de vida americano” na primeira metade do século XX. Esse clássico da literatura noir é lançado pela primeira vez no Brasil pela DBA Editora, com tradução de Stephanie Fernandes.
Lucia descobre que sua filha, de 17 anos, tem se encontrado com um homem mais velho e casado. As tentativas de acabar com este relacionamento causam fraturas na relação e na confiança entre as duas. Mas o que Lucia não esperava era descobrir o cadáver deste homem no terreno de sua casa. Está à beira-mar, após uma tentativa frustrada de encontro dele com sua filha na noite anterior.
Encurralada e desconfiada sobre a autoria do crime, resta à dona-de-casa ocultar o corpo. A partir daí, Lucia entra numa espiral de desespero. Há um detetive obstinado em descobrir a verdade sobre o crime e homens ligados ao morto que surgem para chantageá-la. Cercada pelos perigos representados por estes homens, cabe à mulher equilibrar os pratos de uma vida doméstica de aparência perfeita, enquanto busca uma saída. Esta fachada de “comercial de margarina” não pode ruir.
Protagonista mulher
Escrito por uma mulher, Fachada trata de questões ligadas ao feminino. Aborda, por exemplo, a maternidade e a onipresença do machismo e da misoginia na sociedade americana. Lucia é uma mulher exausta: as demandas de casa, o funcionamento e a pontualidade dos ritos domésticos e a completa ausência de uma individualidade.
A protagonista se sente vigiada a todo momento: pelos filhos, pelo pai que habita a casa e pelo marido que, mesmo a distância – ele está há dois anos na guerra -, acompanha o dia-a-dia da família através de cartas. Lucia questiona o termo “dona-de-casa”: “De onde vem dona-de-casa”? Qual seria minha designação se morássemos em um hotel? (…) Se você não tem um emprego e não cuida da casa, não é nada, pelo jeito. Quem me dera ser outra coisa!”
Se Lucia, uma mulher branca, esposa de um soldado em guerra, morando em uma residência à beira-mar, sofre com a falta de liberdade e individualidade imposta às mulheres naquela sociedade, imagina uma mulher negra? Sybil é a empregada da casa. Apesar de compartilharem o mesmo teto, a patroa pouco sabe sobre ela e se surpreende ao escutá-la falando sobre sua vida íntima. Já Sybil conhece – precisa conhecer – os pormenores da vida daquela família para quem trabalha.
A sociedade americana durante a Segunda Guerra Mundial
Elisabeth Sanxay Holding cria um retrato muito vívido da sociedade norte-americana sob a Segunda Guerra Mundial. Por exemplo, na ausência do marido e da figura paterna, alocado em um destacamento militar, e como a pressão e as obrigações recaem sobre a mulher. O racionamento é um eco que retorna a todo momento ao longo da narrativa. Há a falta de alimentos nos mercados, a substituição destes por outras opções de menor qualidade, os cupons que permitiam uma quantidade limitada de produtos e a possibilidade de acesso aos alimentos desejados através do contrabando.
É interessante como a autora também discute o gênero “histórias de mistério” em seu livro. Lucia diz não gostar dessas histórias, pois nelas nunca ninguém se arrepende dos assassinatos e pelo costume destas em retratar a vítima como alguém que não é digno de pena. “Eu lamento pelas vítimas”, ela diz. Mas é curioso que na “vida real” da história de Lucia, ela não sente pena do morto que descobre em seu terreno.
“Fachada” é, portanto, um thriller feminista que ainda encontra espelhamentos na contemporaneidade. Por exemplo, no papel da mulher na vida doméstica e dos modelos de mãe e esposa. Elisabeth Sanxay Holding escreve sobre uma mulher no limite. Sendo assim, é capaz de tudo para sustentar as paredes outrora sólidas de um lar que ameaçam ruir – mas que descobre um outro lado de si e dos seus desejos neste processo.
Adaptações para o cinema
O romance de Elisabeth Sanxay Holding já inspirou duas produções cinematográficas. Por exemplo, em 1949, Max Ophüls dirigiu “Na teia do destino” (The Reckless Moment), protagonizado por Joan Bennett e James Mason. Já em 2001, teve outra produção com Tilda Swinton no papel principal. Dirigido por David Siegel e Scott McGehee, “Até o fim” (The Deep End) é considerado um dos primeiros grandes papéis de Tilda em Hollywood pelo qual recebeu a indicação ao Globo de Ouro de Melhor Atriz – Drama.
Gabriel Pinheiro é jornalista e produtor cultural, sempre gasta metade do seu horário de almoço lendo um livro. Seu Instagram é @tgpgabriel