Literatura

“Destinatário desconhecido”: Mais de seis décadas de poesia do alemão Hans Magnus Enzensberger reunidas

Hans Magnus Enzensberger . Foto_ BASSO CANNARSA

Lançamento do Círculo de Poemas, “Destinatário desconhecido” apresenta autor com olhar afiado para o mundo a sua volta e ironia fina 

Gabriel Pinheiro | Colunista de Literatura

Em “Para o manual de literatura do ensino médio”, poema que abre esta antologia poética do alemão Hans Magnus Enzensberger, o poeta aconselha:

“Não leia odes, meu filho, leia os horários dos trens: são mais exatos”.

É irônico ler um poeta sugerindo a leitura de textos mais práticos ao invés de poesia – ainda que, realmente, para quem busca a certeza e a exatidão, talvez não irá encontrá-las nas odes ou outras formas poéticas, não é mesmo?

Essa ironia fina é uma das marcas de Hans Magnus Enzensberger neste “Destinatário desconhecido: uma antologia poética (1957-2023)”, que cobre mais de seis décadas de produção poética com tradução e seleção do também poeta Daniel Arelli para o Círculo de Poemas.

“A visita”

Pouco mais à frente, nos versos de “A visita”, o escritor narra um encontro de um homem e um anjo:

“Um anjo totalmente ordinário,/ suponho que do escalão mais baixo.// Você não imagina,/ disse ele, o quanto é dispensável.// Um único dentre os quinze mil matizes/ da cor azul, disse ele,// acrescenta mais ao mundo/ do que tudo o que você faz ou deixa de fazer,”. 

Hans Magnus Enzensberger é filho da Alemanha do pós-Guerra, um país que tenta se reerguer e se reconstruir em meio aos escombros.

“este é um país diferente dos outros,/ sinto remorso por isso, e que eu sinta remorso por isso/ é o mal menor, porque é verdade/ o que suas vítimas, gente morta totalmente comum,/ grita debaixo da terra, em alto e bom som e sem sucesso”. 

“Middle class blues”

Com um olhar tão aguçado para os temas e questões que rodeavam seu horizonte ao longo de décadas de trabalho, os versos de Hans Magnus Enzensberger seguem atualíssimos. É o caso de “Middle class blues”, publicado originalmente em 1964, onde o poeta observa o comportamento da classe média de então:

“Não podemos reclamar./ Temos trabalho a fazer./ Estamos de barriga cheia./ Comemos.// (…) Não temos nada a esconder./ Não temos nada a perder./ Não temos nada a dizer./ Temos”. Noutro texto, “Os ricos” são estes que o intitulam que ganham voz: “Os mais pobres. Ninguém gosta deles. / Carregam fardos pesados./ Nos insultam,/ têm culpa de tudo,/ não podem fazer nada,/ devem partir”. 

Se o fazer poético é uma das temáticas que abre o volume, ele retorna como interesse do poeta por diferentes momentos do livro, sempre com aquele olhar irônico para a própria poesia, como em “Mais razões por que os poetas mentem”:

“Porque o instante/ em que a palavra feliz/ é pronunciada/ nunca é o instante feliz./ Porque quem tem sede/ não leva a sede aos lábios./ Porque da boca da classe operária/ nunca sai a expressão classe operária.”

“Destinatário desconhecido” é o mais abrangente recorte da produção poética de Hans Magnus Enzensberger – que também foi ensaísta, tradutor, editor e professor – publicado na língua portuguesa. Um muito bem vindo resgate de um poeta que teve tanto a dizer, numa observação singular do mundo social, político e cultural que o orbitava – e que segue nos ajudando a interpretar não só o passado, mas o tempo presente. Daqueles autores fundamentais, dos quais é impossível sair incólume após a leitura.

“Ah, todos nós temos/ as mãos cheias de coisas por fazer./ Não há fim à vista”. 

Círculo de poemas

O Círculo de poemas é uma coleção de poesia e um clube de assinaturas da Fósforo Editor. A cada mês, o assinante recebe em casa uma caixinha com duas publicações cuidadosamente editadas. No mês seguinte, essas obras são vendidas também em livrarias de todo o país.

No volume maior, os leitores encontram obras inéditas, reuniões de livros raros ou antologias, com a poesia de autores brasileiros ou estrangeiros de diferentes gerações. Já nas plaquetes – pequenas brochuras que homenageiam a forma de publicação independente tradicionalmente usada pelos próprios poetas para fazer circular seus versos –, a coleção apresenta textos inéditos: poemas, ensaios, diálogos e estudos sobre poesia, para aproximar ainda mais os leitores desse universo. Cada plaquete tem, no verso de sua capa, uma imagem escolhida especialmente para dialogar com os textos, formando uma incrível coleção de obras visuais.

Plaquete “Soneto, a exceção à regra”

Os assinantes do Círculo de Poemas receberam, em conjunto ao “Destinatário desconhecido”, de Hans Magnus Enzensberger, a plaquete “Soneto, a exceção à regra”, dos poetas e tradutores André Capilé e Paulo Henriques Britto.

No pequeno volume, os dois artistas se reúnem para esmiuçar a máquina do poema, revelando os segredos escondidos em cada detalhe. São catorze sonetos de poetas brasileiros, de diferentes gerações e linhagens — Olavo Bilac, Cruz e Sousa, Augusto dos Anjos, Mário de Andrade, Vinicius de Moraes, Jorge de Lima, Carlos Drummond de Andrade, Sosígenes Costa, Mário Faustino, Hilda Hilst, Maria Lúcia Alvim, Glauco Mattoso, Augusto de Campos e Guilherme Gontijo Flores —, para exemplificar as inúmeras possibilidades de escrita a partir do domínio e do jogo com as regras recebidas da tradição.

Entre a erudição da análise teórica e a leveza de uma conversa apaixonada, a plaquete “Soneto, a exceção à regra” é um verdadeiro convite ao mergulho nessa forma poética tão singular. O volume apresenta os catorze sonetos selecionados seguidos pelos comentários de André Capilé e Paulo Henriques Britto, que, juntos, expõem os mecanismos de criação de versos antológicos da poesia brasileira.

Encontre “Destinatário desconhecido: uma antologia poética (1957-2023)” aqui

Encontre “Soneto, a exceção à regra” aqui

Gabriel Pinheiro é jornalista e produtor cultural. Escreve sobre literatura aqui no Culturadoria e também em seu Instagram: @tgpgabriel (https://www.instagram.com/tgpgabriel)

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Publicado por Carol Braga

Publicado em 25/10/24

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