Por Gabriel Pinheiro | Colunista de Literatura Deborah Levy
Em setembro de 1988, o jovem britânico Saul Adler está prestes a viajar para a RDA – República Democrática Alemã, o lado soviético do país – para realizar uma pesquisa acadêmica. Ainda na Inglaterra, ele vai até Abbey Road para reproduzir, com a ajuda de sua namorada fotógrafa, o famigerado registro da capa do último disco gravado pelos Beatles. A foto será um souvenir para a irmã de seu tradutor alemão, uma fã incondicional do quarteto de Liverpool.
Momentos antes de realizar a fotografia, ele sofre um atropelamento em Abbey Road, sem graves efeitos imediatos. No mesmo dia, seu relacionamento tem um término abrupto. Chegando na Alemanha Oriental, o historiador descobrirá uma paixão avassaladora por seu tradutor. Todos estes fatos, aparentemente sem ligação, são definidores na vida deste personagem pelos próximos 28 anos, causas e consequências de sua errante trajetória. O homem que viu tudo é o mais recente romance de Deborah Levy, finalista do Booker Prize, recém lançado no Brasil pela Todavia Livros.
Estamos em um daqueles momentos definitivos da História. O clima de tensão política de uma Europa e de um mundo nos últimos momentos da Guerra Fria – o muro de Berlim começará a ruir logo, em 1989 – reflete no estado de espírito de Saul Adler. A paranóia de estar sendo observado, a percepção de acontecimentos incomuns, surge logo antes do seu embarque para a RDA.
Muros intransponíveis
Mas para além deste contexto político maior, a paranóia de Saul foi construída dentro do próprio lar, desde a infância. Se em 1988 há o Muro de Berlim, dentro dele havia outro muro intransponível, de construção tão rígida quanto aquele soviético: um muro que o separava do pai comunista e do irmão – da brutalidade e da masculinidade violenta destes.
Adler é um personagem de composição interessantíssima, dono de uma postura libertária quanto à sua sexualidade e ao seu estilo – o uso de rímel nos olhos, a gravata de seda laranja e o colar de pérolas de sua falecida mãe, que carrega no pescoço desde a sua morte. Se, por um lado, ele nos parece esta figura livre, que impõe sua imagem, a vida na presença do pai, conservador e vigilante, é uma das causas para que ele não consiga construir laços de intimidade duradouros com aqueles com quem se relaciona.
Linearidade e fragmentação
“O homem que viu tudo” é dividido em duas partes. A primeira, em 1988, é mais linear, narrativa, onde acompanhamos o término de seu relacionamento e suas experiências do lado de lá do muro. Já a segunda parte, em 2016, é elíptica, fragmentada, por onde circulam espectros e lembranças, onde o passado se mistura com o agora, refletindo a mente confusa do próprio personagem. Saul aqui é um homem de meia idade, preso em uma cama de hospital após um segundo acidente em Abbey Road. Se a História, com H maiúsculo, é cíclica, composta por repetições, assim é também a vida íntima, a história menor.
Acompanhá-lo em suas experiências e descobertas, as desilusões amorosas e a paranóia na primeira parte nos ajuda a entender este ser fragmentado e frágil que descobrimos na segunda. Ou seja, um coração e uma mente alquebrados pelo tempo, pelas separações e pela culpa. Ele já não se reconhece naquele que o encara através do espelho. “Eu era um homem em pedaços”.
Este novo livro de Deborah Levy é de uma construção brilhante e engenhosa. No entrelaçamento entre passado e presente, cabe ao leitor a montagem deste quebra-cabeça complexo e repleto de peças faltantes que é o seu protagonista. O homem que viu tudo é um romance múltiplo. É sobre a liberdade do desejo, sobre a fragilidade da memória e a incerteza das lembranças, sobre as consequências de nossas ações. É, também, sobre os fantasmas da culpa que retornam ou, na verdade, estão sempre ali, vigilantes, nos espionando.
Gabriel Pinheiro é jornalista e produtor cultural, sempre gasta metade do seu horário de almoço lendo um livro. Seu Instagram é @tgpgabriel