Seguimos aqui com a nossa proposta de tornar a crítica de teatro cada vez mais dialógica. Convidamos Guilherme Weber, o diretor de Peça do Casamento, que esteve em cartaz no CCBB-BH, para responder – e conversar – sobre as impressões que o espetáculo causou. A seguir, você confere o texto já comentado em itálico!
Carolina Braga e Guilherme Weber em diálogo
Esperei passar alguns dias depois de ver Peça do Casamento para me dedicar ao exercício de escrever sobre o espetáculo. Há textos que não podem ser imediatos. Nos casos das montagens teatrais, acredito que aquilo que decanta é o que fica. Portanto, neste caso, como esquecer o impacto que o cenário elaborado por Daniela Thomas e Camila Schmidt causa? Impossível sobretudo se pensarmos sobre os sentidos que ele acrescenta ao texto de Edward Albee, escrito nos anos 1980.
Sempre pensei em espelhos, desde o início dos ensaios. Primeiro porque queria incluir o espectador na cena, vê-los nas paredes. E também porque queria deformar um pouco os personagens e seus conceitos. Pedi que as lâminas não fossem de espelhos puros, e que evocasse tb certo terror, de uma casa de espelhos de um parque de diversões, de um trem fantasma. O tema casamento é tão poderoso e comum (no sentido de comum a todos) que tudo vira metáfora.
Trama
Peça do Casamento conta a história de um casal que, depois de 30 anos junto, o marido comunica à mulher que está saindo de casa. A partir desta informação, eles iniciam o jogo que nos permite pensar sobre os papéis femininos e masculinos nas relações; força e imaturidade; desejo; sexualidade; companheirismo… enfim temas que norteiam as uniões afetivo-sexuais.
Para representar o “ringue” em que o casal interpretado por Eliane Giardini e Antônio Gonzales discute a relação, aposta-se no espelho. Elemento bastante simbólico, vamos combinar! A medida em que a ficção se representa, a iluminação delineia os climas e o real faz parte da cena pelo reflexo.
A escolha pelo cenário espelhado não deixa de ser uma provocação para a plateia. Condiz com o que propõe o texto de Edward Albee. É uma observação distanciada do que seriam os casamentos. O diretor Guilherme Weber sublinha isso no texto do programa. “A vida é uma guerra em que, se a conversa é uma arma, a poética é uma bomba.”, resume o diretor.
Sobre poéticas
O poético, a meu ver, está muito mais na bela representação elaborada pela equipe do que propriamente no que se diz em cena. Foi isso que me fez refletir sobre a teatralidade. Para a crítica e teórica Josette Féral, esta é uma busca – que considero sem fim – pela especificidade da linguagem teatral.
A poética (e não poético) do meu texto no programa se referencia ao estudo das narrativas. Inspirada especialmente no exercício de desconstrução de gênero que Albee faz sobre as “ peças de relacionamento” e o uso de metalinguagem, o teatro como linguagem de investigação do casamento.
Para ela, pensar a teatralidade significa “tentar definir o que distingue o teatro dos outros gêneros”. No caso da montagem de Peça do Casamento, o diretor Guilherme Weber trabalha basicamente com os seguintes elementos: o texto, dois excelentes atores, a iluminação e um livro, o único objeto de cena. O que ele fez no palco não é possível representar em outros lugares.
O berço específico desta obra é o teatro, não por ter sido escrito para, mas pelo uso dos códigos e convenções do meio para apresentar/investigar o tema das relações dentro do casamento.
Em outras palavras: há ali uma teatralidade muito contemporânea. Mesmo sem fazer o uso de tecnologias, como vídeos e outras, bastante comuns atualmente.
Para Nicolai Evréinov, teatralidade tem a ver com exercício de criar “simulacros de si e do real em direção ao outro.” E não seria exatamente isso que o cenário de Daniela Thomas e Camila Schmidt propõe?
Mais cenário
Enfim – e assim – estamos de volta ao cenário. O que isso quer dizer? Talvez que a força dele se sobreponha aos outros elementos. Inclusive, acredito até que ameace a intensidade do texto. Gostaria de saber o que o Guilherme pensa sobre este ponto específico.
Não vejo, nunca, nenhum elemento de uma criação, de maneira isolada. No caso de uma dramaturgia pontuada, como neste caso, todos os artistas envolvidos trabalham em resposta a uma força primeira, aqui no caso, o texto do Albee. Resposta que as vezes pode ser de negação, de deformação, ou de iluminação. Então não vejo sobreposição ou ameaça. O cenário é a representação pictórica de um conceito ou conceitos que foram escolhidos durante o processo de criação da obra. Ele concentra, é a soma dos conceitos.
Aqui, então, os espelhos, que refletem o espectador, multiplicam os personagens e os deformam, como deformados são vários de seus discursos. Mas o mais impactante desta cenografia é justamente a ausência dela, o imenso espaço vazio que os atores tem para trabalhar. Nenhum apoio, nenhuma cadeira, ou mesa ou adereços. Aqui a representação cenográfica é o corpo dos atores e a maneira como a direção organiza estes corpos espacialmente, espelhando marcas e explorando ângulos. Então é um exercício coletivo de criação e presentificação entre cenografia, atores e direção.
O figurino e a iluminação também intensificam toda a opção. A luz também é cenografia aqui. Reinventando as possibilidades dos espelhos e os figurinos se equilibram entre a roupa de função, em coro com a opção da metalinguagem, o desenho dos signos arquetípicos e o realismo necessário à credibilidade dos desenhos dos personagens.
O texto
Ainda sobre a dramaturgia, por mais que a direção Weber, procure destacar a “fragilidade masculina” e a “coragem afetiva e sexual” da mulher, não há como não observar nesse embate sinais da sociedade machista e patriarcal que vivemos. Com um detalhe: no palco e na reação da plateia, inclusive de mulheres, o que é mais triste.
Estes conceitos entre aspas estão apontados no meu texto no programa da peça ao falar sobre os contornos que o masculino e o feminino tem na obra geral do dramaturgo. Mas a direção não pretendeu diminuir os ecos da sociedade machista, pelo contrário. Jogou uma lupa sobre eles observando este casamento heterossexual dos anos oitenta para revelar o quanto ele ainda define relações contemporâneas em muitas esferas. Quanto às reações da plateia, revelar e observá-las é uma das grandes forças do teatro. Uma obra nos ensina sobre nós e também sobre o outro. As vezes com horror.
Sobre o elenco, chamou a atenção a disposição de Eliane Giardini e Antônio Gonzales de encarar uma cena tão nua. Evréinov relaciona a teatralidade principalmente ao corpo do ator. Dessa maneira, no caso deles, a interpretação consegue transitar entre o limite do teatro e do cotidiano. O que é ótimo!
Referência
FÉRAL, Josette. Além dos limites: teoria e prática do teatro. Tradução J. Guinsburg. São Paulo: Perspectiva, 2015