
Joaquin Phoenix como Coringa. Foto: Warner Bros./Divulgação
Em “No Enxame: perspectivas do digital”, o filósofo sul-coreano Byung-chul Han busca em um livro escrito em 1895 pontos para a reflexão sobre a “era das massas”. Veja bem, o objetivo dele é falar sobre os impactos que a digitalização tem trazido para a vida da gente. Ainda assim, isso implica em uma volta no tempo. Parece ser também este o exercício que o diretor Todd Phillips (Se beber, não case) nos propõe em Coringa.
Pois Byung-chul conta que no livro Psicologia das Massas, Gustave Le Bon afirma que a sociedade do futuro terá que contar com a força das massas. “Para Le Bon, a insurgência das massas leva tanto à crise da soberania como ao declínio da cultura. As massas seriam, segundo Le Bon, ‘destruidoras da cultura’”. Ao ler este trecho, foi inevitável pensar na recente experiência como espectadora deste que se tornou o maior inimigo do Batman.
O meio é a mensagem
Assistir Coringa não é – definitivamente – uma coisa tranquila. Em uma instância mais superficial, trata-se de, no mínimo, um filme muito violento. Porém, não acredito ter sido este o objetivo do diretor. Me pareceu muito mais um dispositivo para fazer pensar sobre nosso futuro ou sobre o quanto “o meio é a mensagem”, como diria o canadense Marshall McLuhan.
Em outras palavras: Coringa joga na cara do espectador o quanto o sistema dominante – e operante – é responsável por esse mundo cada vez mais louco e tenso, para usar uma das frases que abre o filme. Você já percebeu qual a parte lhe cabe neste cenário? O que você tem feito para mudar isso? Quem já viu a série Years and Years sabe que esta também é a pergunta que nos fazem por lá.
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And the Oscar goes to …
Acredito que o resultado de Coringa não seria tão potente se não fosse o trabalho de interpretação de Joaquin Phoenix. Arthur Fleck é a melhor atuação da carreira dele e olha que faz coleção de papéis assim. Só ao Oscar, por exemplo, recebeu três indicações por coadjuvante em Gladiador (2001), e melhor em Johnny & June (2005) e O Mestre (2012). Nunca ganhou.
É a atuação de Joaquin que torna as coisas mais fortes. Sei lá, muitas vezes o não dito, diz muito mais do que o dito. Essa é uma máxima em Coringa. Não tem ninguém julgando, ninguém falando sobre o que o Coringa é ou deixa de ser. Como se trata de uma jornada de transformação (para o mal) muito interna, as informações estão mais na feição do que na boca.
Isso é muito potente porque o roteiro, muito bem construído, delega a outros elementos a função de também comunicar. A narrativa se complementa por olhares, expressões, silêncios, cores (que fotografia!) e até músicas que estão lá no pano de fundo, porém dizendo muito.
Por exemplo, a escolha de Everybody Plays the fool, com The Main Ingredient, That’s Life, com Frank Sinatra e mesmo Smile, de Charles Chaplin na voz de Jimmy Durante. “Smile though your heart is aching” ou “Sorria embora seu coração esteja doendo”. Ainda que com um viés patológico, não há nada melhor para definir o Coringa.

Joaquin Phoenix como Coringa. Foto: Warner Bros./Divulgação
Modern Times
Além de Smile, Todd Phillips acrescenta muitas outras referências a Charles Chaplin e Tempos Modernos. O clássico, que virou um dos ícones do cinema mudo, foi lançado em 1936. Nele, Carlitos tenta sobreviver à sociedade industrializada. Ao longo da história, Tempo Modernos foi analisado como uma crítica de Chaplin ao capitalismo, ao imperialismo, entre outros temas.
De certa maneira, Coringa e Carlitos tentaram sobreviver à suas respectivas sociedades. No caso de Arthur, foi moldado por experiências de bulling, transtornos psicológicos, aliados à falta de oportunidade, de afeto. Arthur Fleck é um vagabundo, fruto de um sistema imperialista. E mais: que descobre o próprio poder ao cair nas graças da massa.
Byung-chul Han diz que “a massa é o poder”. Ao representar isso, Coringa, o filme, assim como Tempos Modernos, constrói, também, uma crítica ao mundo globalizado. Ele se desenvolve a partir de duas forças opostas. De acordo com o filósofo, se por um lado nasce do “Império”, ou seja, de “uma ordem de domínio capitalista descentralizada”, do outro existe a multidão. “Uma composição de singularidades que se comunicam por meio da rede e agem conjuntamente. Ela se opõe, no interior do Império, ao [próprio] Império.” Eis um dos recados do Coringa para nosso século XXI.
E olha que curioso: na linha do tempo da história em quadrinhos, Coringa é considerado um dos piores vilões. Até então, quando se falava sobre ele, era imediata a relação com Batman. Só. Joaquin Phoenix – e obviamente o diretor Todd Phillips – conseguiram um feito e tanto ao “deslocar” o eixo. Praticamente quebrar lugar comum. O Coringa de 2019, fala mais do homem do que do vilão. É isso que faz dele um dos melhores filmes do ano até agora.