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Literatura

“Coração apertado”: Romance de Marie NDiaye volta ao mercado em audiolivro avassalador na voz de Alice Carvalho

Foto Francesca Mantovani - Gallimard

Lançado pela Supersônica, audiolivro “Coração apertado” traz experiência onde a angústia e a incredulidade parecem tomar conta do ouvinte 

Por Gabriel Pinheiro | Colunista de Literatura

Nadia e Ange são um casal de professores. Trabalham em uma mesma escola de um subúrbio francês. A vida, até então, seguia em sua normalidade: o trabalho diário, o contato com os alunos, os colegas e com a vizinhança. De maneira repentina, eles passam a receber um tratamento hostil de todos aqueles que os rodeiam. Não há um motivo aparente para essa brusca mudança de tratamento. Essa hostilidade caminha num crescente, até que um rompante de violência atinge Ange. Na companhia dele, ferido em casa, Nadia entra numa espiral de loucura e incompreensão, que testa os limites de sua sanidade.

“‘Você sabe muito bem, minha querida Nadia’. Ele começa bem devagar. ‘Que pessoas como vocês são mal vistas'”. “Coração apertado” é um livro da franco-senegalesa Marie NDiaye, que, esgotado há mais de uma década, retorna ao mercado brasileiro no formato de audiolivro pela Supersônica, narrado por Alice Carvalho, atriz de “Renascer” e “Cangaço Novo”.

Romance kafkiano

O sentido de irrealidade de “Coração apertado” tem um aspecto fortemente kafkiano. O sentimento de opressão que parece tomar conta, até mesmo fisicamente, de sua protagonista. Quanto mais ela tenta entender, menos parece compreender — sensação compartilhada com o seu leitor, ou melhor, nesse caso, ouvinte. Nadia é uma personagem complexa. Se poderia ser construída apenas no papel de vítima por Marie NDiaye, a escritora faz um acúmulo de camadas distintas e conflituosas em seu desenvolvimento. 

Entre vítima e algoz, um delicado equilíbrio sustenta esta personagem, onde questões de classe e de ascensão social parecem se esconder num passado, até então, deixado para trás.

“E eis então, que eu, que passei trinta e cinco anos da minha família, se por acaso, cruzasse com eles em minha cidade, fossem incapazes de reconhecer meu rosto e minhas maneiras, pelo menos não o bastante para se atreverem a me abordar. Eu, que combati em mim todo traço visível da minha educação, para que não se imprimisse nas minhas feições, nem no meu modo de falar ou de me comportar”. 

O ódio à diferença 

“Coração apertado”, enquanto texto, é construído no fluxo de tensão constante — há um flerte com o thriller, inclusive. Mas, aqui, é preciso destacar o quanto a experiência em audiolivro parece aprofundar essa tensão, num trabalho primoroso de Alice Carvalho. A atriz, sob direção de ninguém menos que Daniela Thomas, trabalha a protagonista em sua complexidade. Todas as nuances de um coração verdadeiramente apertado atravessam sua voz, que modula a angústia, a dor, a fúria e a incredulidade. “Não consigo me desfazer da impressão de que a cidade inteira me vigia. O meu coração acossado, cercado pela matilha, bate contra o peito e quer saltar da sua gaiola exígua. Meu pobre coração que envelhece, meu coração trêmulo.”

Noutro ponto kafkiano da narrativa, o corpo de Nadia sofre uma dolorosa metamorfose durante o romance, sendo questionada a todo momento por aqueles que encontra em sua trágica caminhada: algo cresce dentro da mulher. Publicado originalmente em 2007, “Coração apertado” segue firmemente atual num cenário em que o ódio à diferença segue cada vez mais exacerbado. Uma narrativa angustiante e repleta de interpretações. “Meu pobre coração envolto em gordura, de bater disparado sempre que alguém surge diante de mim com ar de espanto”.

Coração apertado (Créditos Supersônica)

Encontre “Coração apertado” aqui

Gabriel Pinheiro é jornalista e produtor cultural. Escreve sobre literatura aqui no Culturadoria e também em seu Instagram: @tgpgabriel (https://www.instagram.com/tgpgabriel)

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