Se, por acaso, você integra o 1/3 das pessoas no mundo que tem fome, não precisa ler essa coluna. Caso contrário, se faz parte dos outros 2/3, esteja certo: alimentar-se é um dos seus maiores privilégios. Nunca o que colocamos à nossa mesa foi tão significativo. Inclusive, com efeitos tão visíveis e concretos. Da crise climática à saúde pública, tudo está relacionado à nossa cadeia alimentar. Já pensou?
Desde os primórdios, preparar as próprias refeições é o que nos torna humanos. Ao cozinhar, utilizamos o fogo, a água, a terra e o ar, como nenhum outro ser. E como nas colunas anteriores, pensar um tema envolve muitos outros. Neste caso, comer pode nos remeter à generosidade e ao amor. Na minha infância, lembro de trocar o pão francês da minha casa pelo pão de queijo e bolo da vizinha. Adorava! Talvez, por isso, tenha me tornado um “bolólatra” e ainda não tenha me livrado do vício do açúcar. Um prazer de voltar a um tempo bom.
Por outro lado, também se relaciona com a fome, as dietas, a gordofobia e, principalmente, a desigualdade. Essa talvez seja a que mais grita aos nossos ouvidos. Enquanto uns apostam em jejuns intermitentes ou optam por uma nutrição saudável, outros são privados do direito universal. Inclusive, uma obrigação do Estado prevista na Constituição. E a fome não é só de comida. Fome de justiça, de paz, de igualdade. Sendo assim, como sinônimo de falta, ela revela o quanto nossa comida está diretamente ligada ao nosso entorno. A pobreza não é de uma pessoa. É de um país. De um planeta. Diante disso, o nosso prato, antes de nos servir, nos pergunta: “Qual é a sua fome?”.
foto: @vitorvieirafotografia
A cadeia alimentar
Na infância, aprendi a olhar o preço e a validade dos produtos. Mais tarde, a consultar os ingredientes e calorias. Agora, torna-se primordial saber a procedência e as condições nas quais foram produzidos. Portanto, consumir é um ato político. Ou seja, somos investidores daquilo que consumimos. Inconscientemente, cada garfada impacta a todos.
Bem cedo, aprendi isso. Minha mãe, sempre que a urgência de comer dava espaço, fazia uma breve oração: “Obrigada Senhor, a todas as pessoas que possibilitaram que esse alimento chegasse à nossa mesa”. Logo, nosso prato é feito por toda uma cadeia. Como se fosse um sistema digestório. Eventualmente, a árdua tarefa de extrair a energia que nos sustenta pode sobrar pra alguém. A base de tudo é a mesma. A Terra é o nosso prato e sustento. Assim, ela nos acolhe e nos provê com tudo que necessitamos pra viver. No entanto, muitos ainda agem como uma criança quando pergunta aos pais de onde vem o leite da caixinha ou se o lixo desaparece depois de embalado no saco plástico.
Imediatamente, lembro de um dos melhores filmes brasileiros de todos os tempos, eleito pela Abraccine – Associação Brasileira de Críticos de Cinema. Infelizmente, o premiado curta metragem de Jorge Furtado, “Ilha das Flores” (1989), continua atual. Narra a saga de um tomate, do campo de cultivo, passando pela compra até ser descartado e parar no aterro sanitário da cidade (que dá nome ao título do filme). Nos breves 13 minutos, narrados por Paulo José, temos uma aula de consciência sobre consumo, desperdício e pobreza. E nos provoca: “Liberdade é a palavra que o sonho humano alimenta, que não há ninguém que explique e ninguém que não entenda”.
foto: @vitorvieirafotografia
A “Grande Fome”
Parece que ainda não aprendemos muito com a história, sobre a importância do alimento. Por exemplo, no Século XIV, durante a “Grande Fome” que causou milhões de mortes na Europa. Muitos acreditavam ser um castigo de Deus para aqueles que não trabalharam. Ainda hoje, muitos trazem crenças associando a falta de vontade para trabalhar à miséria. Provavelmente, se esquecem que “saco vazio não para em pé”. A fome é um fator social independente da meritocracia.
Atualmente, segundo o Programa Mundial de Alimentos, a maior agência humanitária da ONU (Organização das Nações Unidas), o Brasil pode voltar ao mapa da fome, ausente desde 2014. Assim, estudos do Banco Mundial estimam que 14,7 milhões de brasileiros passem à extrema pobreza até o fim de 2020. No mundo, seriam 265 milhões! São números tão inimagináveis quanto suas consequências!
Então, qual seria a saída para um país como o nosso, grande produtor de alimentos, com um povo trabalhador, mas sem acesso à comida? Para isso, especialistas apontam uma solução há décadas: fortalecer o trabalhador rural e o acesso a terra para agricultura familiar; políticas públicas ao acesso dos produtos dessa agricultura; taxação de ultraprocessados; e educação alimentar nas cadeias e escolas (hoje, seriam cerca de 43 milhões de crianças alimentadas). Dessa forma, fica claro que uma pequena parcela de homens brancos, detentores de poder financeiro e político, é a protagonista dessa mudança.
E eu com isso?
Deparar com dados como esses assustam. E, por consequência, podem gerar dois movimentos distintos: nos imobilizar ou nos impelir para agir. Mas nada disso parece afetar a grande audiência dos realities shows de culinária na TV. Talvez por ter uma habilidade quase nula na cozinha, confesso que não estão na minha lista de programas favoritos. Então, busco na reflexão outra forma de atuar. Por isso, sugiro acrescentar uma boa dose de consciência na receita. Pra começar, a série “Cooked” (2016), criada por Alex Gibney, disponível na Netflix.
A série em quatro episódios é baseada no livro de Michael Pollan, aclamado escritor e ativista da alimentação. Ao visitar a gastronomia de várias partes do mundo, fica claro como o ato de cozinhar transforma o mundo em que vivemos. Comer define muito a cultura de um povo. E mais: é impressionante como o homo erectus se distanciou da terra e passou a terceirizar sua principal fonte de energia, o alimento.
É curioso notar ainda como cozinhar não diminuía em nada a virilidade de um homem na antiguidade. Ao contrário, era considerado um prestígio por se tratar de um importante ritual. Em um dos episódios, Pollan traz um estudioso que cita o poema épico de Homero, “Odisseia”, na qual os heróis caçavam, cozinhavam e serviam a comida. É uma pena que tenhamos perdido tanto no caminho da ficção da masculinidade hegemônica.
Trailer da série “Cooked” / créditos: Netflix/divulgação.
10 Bilhões – O que tem para comer?
Em 2012, meu primo, Daniel Mucida, Doutor em Imunologia e Professor Associado da Universidade Rockefeller, nos Estados Unidos, me mostrou dados alarmantes. Sobretudo, notar como o alimento de boa qualidade cedeu ao consumo excessivo e a industrialização. O mix de preço acessível e o excessivamente calórico gerou a “fome oculta”. Ou seja, uma “máscara” para o problema alimentar. Por fim, as pessoas preferiram ter um celular a consumir uma boa comida, sem agrotóxicos. O premiado documentário “Super Size Me” (2004), de Morgan Spurlock, mostra os danos que a fast food provoca.
Mesmo com as inúmeras campanhas sobre alimentação saudável, ainda há muito a ser feito. E os sinais de alerta já foram dados. O documentário “10 Bilhões – O que tem para comer?” (2015), de Valentin Thurn, traz inúmeros deles. O filme revela os desafios mundiais para alimentarmos cerca de dez bilhões de pessoas no planeta em 2050.
Neste curto prazo, será preciso bem mais que a inteligência artificial e biotecnologia. É fundamental a terra arável e água potável para produzir e distribuir para a crescente demanda de comida. Ainda assim, a indústria segue a passos largos mantendo o atual sistema econômico. É assustador pensar que mais de 1/3 da colheita de grãos no mundo são para animais. Se toda a população da Índia, hoje 40% de vegetarianos, decidisse comer carnes, seriam necessários três planetas para prover esse consumo. Para se ter uma ideia, hoje, um indiano consome cerca de quatro quilos/ano de carne, enquanto um americano 66 quilos/ano. No Brasil, temos mais boi que gente, segundo o IBGE.
Trailer do filme “10 Bilhões – O que tem para comer?” / créditos: Prokino/divulgação.
Sua comida, futuro do mundo
Apesar de não ser um assunto nada palatável, pensar a nossa nutrição vai muito além de questões estéticas e médicas. Ou seja, exige autoconhecimento e compreensão dos efeitos daquilo que nos satisfaz. Como ressalta o rabino Nilton Bonder em seu livro “A Cabala da Comida”: “Ter consciência da essência energética dos alimentos e de como eles são produzidos, não desperdiçar comida e praticar a moderação à mesa são iniciativas que contribuem para o sucesso na batalha contra os males da obesidade e em favor do equilíbrio alimentar. A própria vida pode ser vista como uma grande dieta, na qual precisamos estar em sintonia com a saúde, em todos os níveis”.
Diante disso, medidas paliativas não resolvem. Porém, temos uma poderosa ferramenta que transpõe barreiras: a consciência e o poder de escolha. Ainda tenho muito o que aprender nesse sentido. Desde evitar embalagens plásticas a compra de produtos de empresas envolvidas em esquemas de corrupção e ações prejudiciais ao meio ambiente. E opções não faltam. Durante a pandemia, vimos crescer a atenção aos pequenos produtores e mercados de bairro, além de ações de micropolítica de auxílio emergencial aos menos favorecidos. Além da redescoberta do prazer de fazer a própria comida, em casa. Com isso, dar os devidos tempo e atenção ao que ingerimos e onde gastamos nosso dinheiro. Muito além da estética e saúde, nossa despensa expõe uma posição frente ao mundo que queremos ter.
foto: @vitorvieirafotografia
PS: Faça um cálculo rápido do quanto você gasta, em média, com a sua alimentação. Compare com as demais contas e perceba em que posição ela está nas suas prioridades no momento. Talvez seja um bom começo para reflexão.
Paulo Azevedo (@pauloazevedooficial) é ator e comunicador, idealizador do podcast almasculina.