
Matthias Lehmann (Credito Isabelle Franciosa)
Confira resenha do livro “Chumbo” entrevista com o autor Matthias Lehmann realizada durante o Festival Internacional de Quadrinhos de Belo Horizonte
Por Gabriel Pinheiro | Colunista de Literatura
Publicado em 2023 na França, “Chumbo” é um volumoso raio-x da história política brasileira no decorrer do século XX escrito pelo quadrinista francês Matthias Lehmann. Se a possibilidade do olhar estrangeiro para a história brasileira talvez cause estranhamento em um leitor desavisado, cabe aqui um complemento: apesar de nascido e criado na França, a família materna de Matthias é brasileira. Ao abrir o quadrinho, logo em suas páginas iniciais, a vivacidade da representação de uma Belo Horizonte ainda em suas primeiras décadas de existência, já deixa entrever o conhecimento e o interesse de Lehmann sobre esta parte de sua herança familiar. “Chumbo” ganha, agora, publicação no Brasil pela Editora Nemo, com tradução de Fernando Scheibe e Bruno Ferreira Castro.
Saga familiar
“Chumbo” é uma grande saga familiar inserida num contexto político-social onde poder e dinheiro andam lado a lado de esferas como as políticas, culturais e religiosas de um país. Da Era Vargas até a frágil redemocratização brasileira, acompanhamos o clã Wallace, família que tem sua riqueza proveniente da extração mineral no interior de Minas Gerais. Se Oswaldo, chefe deste núcleo familiar, é, na década de 1930, um simpático apoiador da Ação Integralista Brasileira — movimento político de extrema-direita fundado em 1932 de inspirações fascistas que visava a derrubada do governo de Getúlio Vargas — vemos como os interesses políticos da família se dividem na geração posterior, sobretudo nas figuras de dois irmãos, Ramires e Severino. Enquanto o primeiro será, no futuro, um entusiasmado simpatizante do Golpe Militar de 1964, o segundo será um preso político, torturado nas dependências do DOPS na capital mineira. Lehmann nos coloca no papel de testemunhas de atos de tortura realizados por militares contra opositores políticos, em quadros que não amenizam a violência sofrida por milhares de brasileiros naquele período.
As transformações de Belo Horizonte retratadas no quadrinho
Matthias Lehmann realiza uma pesquisa de fôlego no quadrinho. Foram muitos os governos e tensões políticas que marcaram a realidade brasileira no século passado. No entrelaçamento da família Wallace aos meandros do poder, acompanhamos o apogeu e a queda deste grupo familiar: das festas suntuosas no Cassino da Pampulha — na presença, inclusive, do então prefeito de Belo Horizonte, Juscelino Kubitschek — à perda da própria empresa de extração de manganês e, consequentemente, da dilapidação do patrimônio ao longo de décadas.
Para o leitor belorizontino, “Chumbo” tem um sabor especial. Atento aos detalhes, Matthias Lehmann constrói os cenários da capital mineira com cuidado. Edifícios históricos, estabelecimentos símbolos e ruas importantes da cidade são desenhados num registro que se aproxima do fotográfico. Praça da Estação, Cine Theatro Brasil e Café Palhares, para citar alguns, ganham vida e movimento pelas mãos do habilidoso artista: um leitor atento pode se perder pelos inúmeros easter eggs que se escondem pelas páginas do quadrinho.
A boemia de Belo Horizonte é construída com nitidez, tendo como figura central o jornalista Severino, que se transforma em um importante escritor da cena literária brasileira, sobretudo com o romance que publica a partir da experiência pessoal em um movimento armado contra a ditadura e sua consequente prisão. A figura de Severino é construída tendo como inspiração um fundamental escritor mineiro: Roberto Drummond, tio de Matthias Lehmann.
Polarização política que atravessa décadas
“Chumbo” é o retrato de uma polarização política que marca a história brasileira há muitas décadas. Para muitos, essa polarização que divide e separa famílias pode parecer recente — sobretudo a partir da alçada ao poder de um governo de extrema-direita em tempos recentes — mas é apenas a evolução de um movimento que atravessa décadas desta nossa república, ainda, consideravelmente jovem… e frágil.

Entrevista com Matthias Lehmann
O quadrinista Matthias Lehmann foi um dos grandes nomes da 12ª edição do Festival Internacional de Quadrinhos de Belo Horizonte. Conversamos com o autor durante o evento sobre a sua relação com o Brasil, a recepção da obra na França e o seu processo criativo no retrato de Belo Horizonte no quadrinho.
Apesar de ser uma obra que olha para um longo período do passado do Brasil, “Chumbo” é bem atual, não é mesmo? Ela parece retratar um ciclo de autoritarismo que vai se repetindo…
Eu não sei se é um ciclo, mas com certeza eu acho que tem uma ligação entre todos esses períodos autoritários do Brasil. É por isso que o livro começa em 1937, quando tem o movimento dos Integralistas, essa a extrema-direita brasileira, depois o Estado Novo, tudo isso. Eu quero mostrar essa continuidade: tem sempre umas pequenas diferenças, mas realmente tem um estado de espírito que se mantém. Eu acho que esse é o pensamento da extrema-direita, é sempre assim.
Inclusive, na França, tem uma grande, se posso dizer, entre aspas, “cultura de extrema-direita”. Acho que até a França que criou esse conceito, que está se mantendo. E a gente está num momento, na França, onde estamos chegando numa situação de governo de extrema-direita provavelmente daqui alguns anos…. Então, de certo modo, eu falo do passado do Brasil, mas também do presente do Brasil e do presente da França.
E como foi a recepção do quadrinho na França?
Foi muito boa. Teve, inclusive, muita imprensa e é um livro que tem vendido bem. O público leitor me fala que aprendeu bastante sobre o Brasil. Um olhar fora daquele do cartão postal, do colorido, sabe? O meu objetivo com esse livro também era isso: falar da complexidade da história política do país. E também da história cultural, porque acho que tem referências culturais do Brasil que são pouco conhecidas na França.
Como surge o projeto deste quadrinho? Para além de contar uma história, você também queria descobrir uma história com ele?
“Chumbo” surgiu em um momento onde eu precisava afirmar minha relação com o Brasil. Minha mãe é brasileira e meu pai é francês — e eu nasci e fui criado na França. Eu vinha regularmente ao Brasil e minha mãe transmitiu para minhas irmãs e para mim um forte apego com a cultura brasileira. Até agora, a minha ligação com o Brasil era a família, mas a família envelheceu, muita gente faleceu, tudo isso.
Então, chegou um momento em que eu pensei: bom, eu tenho que ser ativo nessa relação, criar alguma coisa que faça com que o Brasil também faça parte de mim e que eu faça parte do Brasil. Um tipo de ação, digamos, uma ação enquanto cidadão brasileiro. O quadrinho foi esse caminho, o melhor jeito de construir alguma coisa.
Para um leitor de Belo Horizonte, Chumbo registra de maneira muito vívida a modernização da cidade… como se deu seu processo tanto de pesquisa quanto de criação dessa Belo Horizonte ao longo do século XX?
Bom, eu pesquisei em muitas fontes, como livros, acervos e muitas publicações em redes sociais e blogs de fotos antigas de Belo Horizonte e Minas Gerais. Fui coletando todas essas imagens, sobretudo fotos dos anos 50 e anos 60, para usar no livro. Cerca de 10 anos separam cada capítulo de “Chumbo”. Então, isso mostra a evolução da cidade, como ela cresceu, como algumas partes dela sumiram, outras foram criadas, algumas permaneceram… No meu desenho, é sempre assim, eu tento captar a imagem fotográfica e transformar, de certo modo, em alguma coisa de icônica. Por isso que eu uso o preto e o branco também.

Gabriel Pinheiro é jornalista e produtor cultural. Escreve sobre literatura aqui no Culturadoria e também em seu Instagram: @tgpgabriel (https://www.instagram.com/tgpgabriel)