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“Cassandra em Mogadício”, de Igiaba Scego, é longa e emocionante carta à sobrinha e à Somália

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Lançamento da Editora Nós, “Cassandra em Mogadício”, novo livro da escritora italiana-somali traz olhar sensível para a história de sua família e para a História do país africano

Gabriel Pinheiro | Colunista de Literatura

Três palavras somali norteiam o novo livro da escritora italiana-somali Igiaba Scego: “Djíro”, “Roiô” e “Âbo”. Respectivamente, doença, mãe e pai. Enquanto nas duas últimas a escritora escava uma série de significados que se relacionam com o afeto, o amor e a resistência, na primeira, ela identifica a dor, a perda, o desenraizamento e a diáspora. “Cassandra em Mogadício” é um lançamento da Editora Nós, com tradução de Francesca Cricelli.

Igiaba Scego Foto Simona Filippini
Igiaba Scego Foto Simona Filippini

“Mas, para nós, Djíro é uma palavra mais vasta. Fala de nossas feridas, de nossas dores, de nosso estresse pós-trumático, pós guerra. Djíro é nosso coração partido. Nossa vida em equilíbrio precário entre o inferno e o presente”. 

Família diaspórica

“Cassandra em Mogadício” é escrito como uma longa carta de Igiaba à sua sobrinha, Soraya. Igiaba escreve de sua Itália natal para o Canadá onde vive Soraya. Tia e sobrinha separadas por um universo de distância, tanto físico quanto simbólico. A partir da palavra escrita, a autora busca dar forma à trajetória da própria família, décadas de uma história que tem, no passado, a Somália e, no presente, a dispersão por diferentes países e realidades: uma família diaspórica.

“Somos seres diaspóricos, suspensos na ventania, os desenraizados de uma ditadura de mais de vinte anos, uma das guerras mais devastadoras que houve no planeta Terra (…)”.

A partir das lembranças do pai e de conversas com a mãe, Igiaba Scego traz à vida, pela literatura, a Somália de outrora. Pré-ditadura de Siad Barre – que dominou o país entre 1969 e 1991, levando a família Scego ao exílio na Itália – e pré-guerra civil de 1991, que derrubou a ditadura anterior de maneira devastadora para o país e para seus habitantes. No texto, renasce, brevemente, uma Somália que enxergava uma possibilidade de futuro em liberdade, longe das garras do colonialismo – sobretudo o italiano – que dominou a região até 1960. Uma Somália que Igiaba Scego não conheceu. Uma Somália imaginada. Sonhada.

“Mas você está distante. E eu escrevo-lhe. Sobre mim, sobre sua avó, sobre o Djíro, sobre nós. Sobre uma família esfacelada pela diáspora”.

A guerra civil na Somália eclode na passagem de 1990 para 1991. Igiaba se preparava para uma festa de ano novo, aos dezesseis anos. Em casa, apenas o pai, o âbo. A mãe, roiô, estava em Mogadicio, capital da Somália, epicentro do conflito.

“O Djíro me habitava desde meu nascimento, Soraya, mas foi naquela noite que conquistou meu corpo por inteiro.”

O peso dos temas

Em “Cassandra a Mogadício”, a escritora lida com temas como o colonialismo, o exílio, o racismo, o machismo, a violência contra a mulher em diferentes esferas e a maneira como todos esses temas se retroalimentam tanto nas histórias do país africano e da Europa, quanto na trajetória daqueles que partiram da terra natal em direção a um novo continente que não os enxergava enquanto cidadãos. Igiaba Scego é uma cidadã italiana, nascida no país europeu. É bonito e potente ver a relação da autora com o país, sobretudo a capital, Roma. Mas a beleza aqui não significa uma relação puramente harmônica. O conflito, a construção de um espaço para si dentro dessa nação enquanto mulher, negra e filha de imigrantes é parte dessa beleza e dessa força.

“O italiano, a língua daqueles que colonizaram nossos antepassados tanto em Barawa como em Mogadício, uma língua que já foi inimiga, escravocrata, mas agora tornou-se, para uma geração que vai desde minha mãe até mim, a língua dos nossos afetos. A língua dos nossos segredos mais íntimos. A língua que nos completa, não obstante suas contradições.”

Cura

Se “Cassandra em Mogadicio” é um livro sobre a dor, sobre o Djíro que persegue incessantemente, ele é também um livro sobre a cura. É a partir dele que uma história – tanto com H maiúsculo, quanto minúsculo – pode ser reconstruída, resgatada dos escombros de um país fraturado pela guerra, pela perseguição política e pelo abuso de poder por outras nações. Nessa reconstrução da história, está a possibilidade de construção de uma ponte, a possibilidade de construção de um diálogo. Entre tia e sobrinha, passado e presente, entre presente e futuro, entre autora e leitor.  

“Djiro. A maldita guerra que mora dentro de nós. E nos quebra. Seria você meu antídoto contra o Djiro, meu amor? Contra a guerra que ainda me devasta? Sou sua edo, querida Soraya. Uma tia, sua tia. Que som doce tem essa palavra, não é? Não havia percebido. Agora eu sei: é a palavra mais linda do mundo. Pelo menos para mim.”

Encontre “Cassandra em Mogadício” aqui.

Gabriel Pinheiro é jornalista e produtor cultural. Escreve sobre literatura aqui no Culturadoria e também em seu Instagram: @tgpgabriel (https://www.instagram.com/tgpgabriel)

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