Literatura

“Cara paz”: o trauma da perda e os laços de irmandade no novo romance de Lisa Ginzburg

Lisa Ginzburg. Foto: Barbara Leda.

Finalista do Prêmio Strega de 2021, “Cara paz” é o primeiro romance da autora, neta de Natalia Ginzburg, lançado no Brasil

Por Gabriel Pinheiro | Colunista de Literatura

Duas irmãs se vêem, de repente, sem a presença da mãe. Gloria desapareceu. Juntas com o pai, elas espalham cartazes de “procura-se” pela vizinhança. Até que, uma semana depois, a mulher faz uma ligação: “O nó de apreensão que tinha nos impedido de viver na última semana se desfez, sumiu, como um lastro de areia que desmoronou numa queda surda e definitiva. Gloria estava viva, sã e salva. Nossa mãe adorada. Nada de tão terrível, só havia ido embora, só isso: fugiu de casa, da sua casa, da sua família”. “Cara paz” é o primeiro livro da italiana Lisa Ginzburg publicado no Brasil. Com tradução de Francesca Cricelli, o lançamento da Editora Nós foi enviado primeiramente para os assinantes do clube de assinaturas Histórias Irresistíveis, da livraria Dois Pontos.

Relações fraturadas

Maddalena e Nina são irmãs italianas. Ainda crianças, lidam com a partida repentina da mãe. Se, na aparência, o casamento era sólido para quem o observava de fora, os sinais da fragilidade da vida conjugal ao lado do marido pouco a pouco se apresentavam entre quatro paredes. “Naquela altura, os dois gritavam, enlouquecidos de raiva. Eram tão diferentes, mas iguais na ferocidade da briga”. Uma paixão avassaladora expõe as rachaduras deste relacionamento, abrindo o vislumbre para uma nova possibilidade de ser, de viver e de amar. Uma escolha e suas consequências: o divórcio altera a relação com as filhas, que se torna circunscrita aos finais de semana e horários pré-determinados pela decisão de um juiz. 

Se as garotas deixam de contar com a presença diária da mãe, o pai também, pouco a pouco, se torna cada vez menos presente. O que começa com jornadas de trabalho que condicionavam o contato com as filhas apenas à noite, evolui para uma mudança de cidade. Seba passa a viver majoritariamente em Milão, enquanto as crianças permanecem em Roma, sob os cuidados de uma jovem tutora. “‘Falta pouco, meninas, um pouco de paciência e as coisas encontrarão novamente o próprio ritmo, vocês vão ver’ (…) Estávamos exaustas, vazias de palavras e de emoções”.

Cara Paz. Editora Nós.

Orfãs sem sê-lo

Filha do historiador Carlo Ginzburg e neta da escritora Natalia Ginzburg, o sobrenome de Lisa Ginzburg nos rodeia de expectativas. “Cara paz” parece superar todas elas. Narrado em primeira pessoa por Maddalena, a primogênita, o romance possui uma escrita fluida e elegante, que mergulha de maneira profunda no íntimo da personagem e no modo como esta se relaciona com o mundo ao redor a partir de uma experiência traumática. A autora também faz uma cuidadosa construção das cenas e de época, nos transportando de maneira vívida para a Itália experienciada pelas duas irmãs. Para os leitores da também italiana Elena Ferrante, há importantes pontos de contato entre as duas autoras, como na construção de cenários e na abordagem de temas como a irmandade, a maternidade, o pertencimento e as relações de poder entre o masculino e o feminino.

Observamos como o trauma deste duplo abandono acompanha e afeta de maneiras ora próximas, ora marcadamente opostas, as duas irmãs. É de uma força e de uma beleza dolorosa o modo como Maddalena o define: “Agora somos órfãs sem sê-lo”. Os fantasmas da infância seguem acompanhando e influenciando suas respectivas vidas enquanto adultas e os relacionamentos que elas irão desenvolver ao longo da vida – uma com a outra, com os filhos, com os companheiros e parceiros amorosos. Maddalena e Nina são como dois lados de uma moeda, duas forças opostas que se repelem na mesma medida em que se atraem. Enquanto a primeira é séria, racional e comedida, a outra é intempestiva, emocional e, por vezes, explosiva. Mas Lisa Ginzburg constrói personagens profundamente humanas, portanto, falhas em suas certezas e comportamentos. Logo, tais características são móveis, fluindo de uma para outra. 

Laços da irmandade

Por fim, “Cara paz” é um livro sobre o vazio. Um “vazio cheio”, como diz sua narradora. O vazio de um lar, o silêncio que se impõe numa realidade antes ocupada pelo sons de uma vida familiar. Se diz desse vazio, as personagens de Lisa Ginzburg buscam maneiras de preenchê-lo, na costura de um delicado laço de irmandade, na medida em que se vêem na companhia e na necessidade da presença uma da outra, enquanto vivem importantes momentos na passagem da infância para a adolescência e, enfim, para a vida adulta. Um sensível e belamente escrito romance de formação.

Encontre “Cara paz” aqui.

Gabriel Pinheiro é jornalista e produtor cultural. Escreve sobre literatura aqui no Culturadoria e também em seu Instagram: @tgpgabriel.

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Publicado por Gabriel Pinheiro

Publicado em 16/05/23

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