Curadoria de informação sobre artes e espetáculos, por Carolina Braga

“Eu, Capitão”, candidato ao Oscar, estreia no Brasil

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Representante da Itália para Melhor Filme Estrangeiro, “Eu, Capitão” fala dos sonhos e desilusões dos imigrantes que planejam viver na Europa

Patrícia Cassese | Editora Assistente

Como nem poderia ser diferente, o drama dos imigrantes que se lançam à sorte cruzando mares por vezes revoltos em embarcações superlotadas ou mesmo sem a mínima condição de navegar, em busca de uma sonhada nova vida na Europa, já é, há muito, um viés explorado pela produção audiovisual. Assim, vários filmes se debruçaram sobre o tema, seja no viés ficcional (como “As Nadadoras”), seja no documental (caso de “Mar de Tristeza” ou mesmo do brasileiro “TFH: Aeroporto Central”, de Karim Aïnouz). Do mesmo modo, minisséries, como “Years and Years” e “Estado Zero”.

Seydou Starr em cena de "Eu, Capitão", filme de Matteo Garrone (Pandora/Divulgação)
Seydou Starr em cena de "Eu, Capitão", filme de Matteo Garrone (Pandora/Divulgação)

Embora seja um tema que obviamente vem pautando noticiários, é forçoso reconhecer que as muitas tragédias que se sucedem nos mares nem sempre ocupam o espaço que deveriam ter, nos jornais. Talvez justamente por serem tão frequentes, passam a não ganhar mais destaque, serem as manchetes. Isso, salvo quando há imagens muito fortes, impactantes, como a do garotinho sírio Aylan Kurdi. Em 2015, a foto do corpo do menino de apenas três anos, em uma praia da costa da Turquia, correu o mundo, bem como a história da família dele, que tinha o Canadá como meca. No entanto, o sonho terminou de modo dramático, quando o bote em que viajavam da Grécia para a Turquia, e que, ao todo, carregava 17 pessoas, virou.

Todo este longo preâmbulo vem no bojo de falar de um filme que, mesmo antes de entrar em circuito no Brasil – o que aconteceu no dia 29 de fevereiro -, já vinha fazendo barulho mundo afora: “Io, Capitano”, ou “Eu, Capitão”, de Matteo Garrone.

Candidato ao Oscar

O diretor, roteirista e produtor, vale dizer, já teve vários de seus filmes exibidos com êxito no Brasil, caso de “Gomorra” (2008, baseado no livro homônimo de Roberto Saviano), do excelente “Reality” (2012) e de “Pinóquio” (2019). “Eu, Capitão”, vale lembrar, é um dos candidatos ao Oscar de Filme Internacional (veja, no final desta matéria, a lista dos concorrentes). A cerimônia de entrega acontecerá no próximo dia 10 de março. (Abaixo, frame de uma das cenas mais comoventes do filme)

História

“Eu, Capitão” mostra a saga de dois adolescentes – Seydou (Seydou Sarr) e Moussa (Moustapha Fall)- que decidem sair da terra natal, no Senegal, em busca de oportunidades na Itália. Como tantos, eles terão que atravessar o mar, no caso, a partir de Tripoli, na Líbia, para tentar alcançar a Sicília. Mas um diferencial do filme de Garrone é que a maior parte da narrativa não se centra na travessia de barco propriamente dita – embora sim, essa etapa também ocupe um tempo considerável.

Ocorre que o diretor dá a primazia à jornada por terra, de Dacar a Tripoli. E, neste sentido, o que se vê é uma sucessão de experiências tão cruéis, absurdas e dilacerantes que, por vezes, a tendência de quem está do outro lado da tela não é outra se não desviar os olhos. Na verdade, muitas críticas a “Eu, Capitão” centram-se neste ponto: a abundância de tomadas na qual a violência perpetrada contra os candidatos a cruzar o Mediterrâneo se revela na representação, por Garrone, de situações que chegam a parecer inacreditáveis, dado resvalarem tanta maldade. Uma incomensurável, inacreditável e dolorosa maldade.

Dilacerante

São certamente riscos pouco conhecidos pela ampla maioria das pessoas, seja qual for o país no qual elas estejam. Inclusive pelos imigrantes. Na verdade, mesmo pelas pessoas que buscam constantemente se inteirar de pormenores deste drama, que vem se intensificando no curso dos anos. Aqui, cabe um adendo para mostrar os impactantes números que cercam a pauta. Em setembro do ano passado, uma estatística apontou que, até ali, mais de 2.500 vidas haviam sido perdidas em travessias por mar. No mesmo período, mas tomando 2022 como base, foram 1.680 pessoas, o que mostra o aumento de um ano para o outro.

Do mesmo modo, o continente europeu recebeu 250 mil imigrantes (em 2023, mas apenas até setembro), que, vale dizer, entraram de maneira irregular. A maior parte deles teve a Tunísia como ponto de partida da travessia, seguida pela Líbia, que é o país mostrado em “Eu, Capitão”. Mas é preciso pontuar que, também no ano passado, Ruven Menikdiwela, diretora do escritório do Alto-comissariado das Nações Unidas para os Refugiados (Acnur) em Nova York, lembrou que fala-se muito da travessia por mar, mas menos, do risco que as pessoas correm em terra. De acordo com ela, as rotas terrestres que partem do Oeste, do Leste e do Chifre da África até a Líbia, bem como os pontos de partida no litoral, seguem entre os mais perigosos do mundo.

Ainda segundo a diretora, nessa rota terrestre, refugiados e migrantes que partem da África Subsaariana “correm o risco de sofrer graves violações dos direitos humanos a cada passo”. E, claro, de morrer. E é justamente isso que “Eu, Capitão” mostra.

A história

“Eu, Capitão” opta por mostrar a história em linha cronológica. Assim, no início, mostra que os personagens Seydou e Moussa estão, em segredo, há muito juntando dinheiro para fazer a travessia do Mediterrâneo. Aos 16 anos, Seydou traz dentro de si toda a inocência e o romantismo típicos da juventude e que sustentam o sonho de uma vida melhor em outro continente. Em dado momento, ele até ousa sondar a mãe quanto a opinião dela diante da possibilidade do projeto, mas ela bruscamente se altera. Daí, tenta mostrar ao filho o quanto a realidade que se desenovela àqueles que aportam na Europa está em dissociada com o imaginário. De pronto, o jovem contemporiza, dizendo que estava apenas brincando (sobre a possibilidade de sair de lá). Mas, perspicaz que é, a mãe, claro, não acredita.

Todavia, ele e o primo insistem na jornada e, assim, acabam saindo às escondidas e partindo. Mas a realidade já começa a dar as caras em pouco tempo, como quando precisam pagar uma expressiva quantia para obter os falsos passaportes. O pior momento, porém, se dá já na travessia do deserto do Saara. É neste ponto que “Eu, Capitão” começa a se tornar desesperador. A começar pelos próprios desafios intrínsecos à jornada, como o enfrentamento de fome e sede, a ausência de medicamentos e, claro, as condições físicas exigidas pela jornada. As adversidades são particularmente perversas para os mais velhos, tal qual para crianças e bebês. Desse modo, muitos entre os mais frágeis sucumbem. E, o mais terrível de tudo: não há o que fazer, senão, seguir em frente.

O drama em outro continente

Aqui, mais uma digressão para lembrar o caso recente da brasileira Lenilda dos Santos, de Rondônia, que, em 2021, quando contabilizava 49 anos de idade, morreu, provavelmente de sede, na fronteira entre o México e os Estados Unidos, ao ser abandonada pelo coiote que a guiava, junto a dois amigos, no deserto, que tiveram que seguir em frente. Portanto, ainda que em outro continente, o mesmo drama mostrado em “Eu, Capitão”.

Cena do filme "Eu, Capitão", no qual o grupo que pretende chegar à Europa tenta cruzar o deserto do Saara (Pandora Filmes/Divulgação)
Cena do filme “Eu, Capitão”, no qual o grupo que pretende chegar à Europa tenta cruzar o deserto do Saara (Pandora Filmes/Divulgação)

O Saara

Uma outra ameaça que paira sobre aqueles que tentam atravessar o Saara também é mostrada no filme: o ataque de rebeldes. Neste ponto, a violência em “Eu, Capitão” de fato atinge um ponto que beira o insuportável. Mas, mais uma vez, fica a pergunta: não seria a representação dessa violência, no cinema, necessária para fazer com que a discussão do tema não fique restrita apenas a reuniões entre governos dos países envolvidos, ONGs que atuam na questão e representações oficiais, como a Acnur, mas, sim, que alcance o cidadão comum, que o comova?

Aquela pessoa, que sai de casa pelas manhãs para comprar um pão quente na padaria, que toma o café enquanto lê um livro, que sai com o cachorro para passear ou que vai se exercitar na academia ou nos parques (claro, não que ela não deva fazer isso, mas é preciso que um tema como esse ao menos chegue ao conhecimento de todos). Se há um ditado que diz que o que os olhos não veem, o coração não sente, não é primordial que o conhecimento da existência tais violências se amplie, mesmo por meio de representações ficcionais? Aliás, voltando a um episódio já citado, não foi por meio das imagens do corpo de Aylan Kurdi já sem vida, avistado de bruços, no contorno da areia com as ondas do mar, que a população mundial teve um dos picos do interesse pelo tema, uma atenção especial a esse drama que ceifa a vida de tantas crianças, e que coloca um trágico ponto final em tantos sonhos e ilusões?

A tal da fraternidade, da empatia

Sendo assim, fica a consideração de que muito provavelmente a intenção de Garrone foi de fato expor o inimaginável para o cidadão comum, com vistas a gerar estupor e, consequentemente, mais empatia e empenho em encontrar formas de mitigar o drama. Principalmente em tempos de ascensão da extrema-direita e de discursos de intolerância e xenofobia. E se ao mesmo tempo “Eu, Capitão” se esforça para deixar claro que há seres humanos totalmente destituídos de bondade e sentimentos, a ponto de impingirem ao outro um sofrimento além do aceitável, há, também, pessoas dispostas a dar muito de si.

É o caso do adorável Seydou, tão bem defendido por Seydou Sarr. Se o garoto vai perdendo a inocência ao longo da jornada, por outro lado, jamais deixa de lado o poder de enxergar, no outro, um irmão, uma vida a ser salva, uma parte de si. Fato, na vida real, todos bem sabemos, nem sempre é o bem que triunfa. Mas enquanto houver pessoas como o personagem, o mundo ganha uma chance de não ser, digamos assim, tão inóspito e cruel como tantos estão empenhados para que seja. Que sempre haja, pois, muitos Seydous por aí. E que, claro, eles tenham ventura.

Confira, aqui, o trailer de “Eu, Capitão”

Concorrentes a Melhor Filme Internacional no Oscar 2024

“Sala de Professores” – Alemanha
“Eu, Capitão” – Itália
“Dias Perfeitos” – Japão
“Sociedade da Neve” – Espanha
“Zona de Interesse” – Reino Unido

Ficha técnica

“Eu, Capitão”

Direção: Matteo Garrone
Roteiro: Matteo Garrone, Massimo Ceccherini, Massimo Gaudioso, Andrea Tagliaferri
Produção: Matteo Garrone, Paolo Del Brocco
Elenco: Seydou Sarr, Moustapha Fall, Issaka Sawadogo, Hichem Yacoubi, Doodou Sagna
Direção de Fotografia: Paolo Carnera
Desenho de Produção: Dimitri Capuani
Trilha Sonora: Andrea Farri
Montagem: Marco Spoletini
Gênero: drama, suspense, guerra
País: Itália, Bélgica, França
Ano: 2023
Duração: 121 minutos
Classificação Indicativa: 14 anos

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