Curadoria de informação sobre artes e espetáculos, por Carolina Braga

CCBB BH apresenta a exposição “Ruídos”, da artista Berna Reale

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A partir desta quarta, 10 de abril, o público poderá conferir pinturas, fotos e registros de performances da aclamada artista Berna Reale

Patrícia Cassese | Editora Assistente

Uma característica particular chama a atenção de quem adentra as galerias situadas no andar térreo do Centro Cultural Banco do Brasil Belo Horizonte – o CCBB BH, espaço que, a partir desta quarta-feira, dia 10 de abril de 2024, sedia a mostra “Ruídos”, da artista Berna Reale. É que, ao contrário de outras experiências expositivas, a iniciativa praticamente prescinde do recurso de totens, painéis ou plotagens com textos explicativos. Portanto, permite que o visitante experimente a fruição dos trabalhos da artista paraense de forma mais intuitiva e orgânica, mais direta.

Berna Reale, cuja exposição "Ruídos" chega agora à capital mineira (Filipe Nyland/Divulgação)
Berna Reale, cuja exposição "Ruídos" chega agora à capital mineira (Filipe Nyland/Divulgação)

Mas antes de entrarmos na seara desta exposição em particular, vale repassar alguns aspectos interessantes da trajetória da artista, cujo nome já marcou presença em várias edições do Prêmio Pipa. A começar pela lembrança de que esta é a segunda individual de Berna Reale na capital mineira – a primeira aconteceu em 2019, quando ela levou a instalação “Festa” ao Viaduto das Artes, no Barreiro. “Ruídos”, por sua vez, começou o giro pelo circuito CCBB no equipamento de Brasília. Agora, é a vez de BH: a mostra pode ser vista até 10 de junho.

A lida com o mundo real

É necessário também pontuar uma informação importante ao entendimento do percurso de Berna. É que, além de operar no universo da arte, Berna é perita criminal, profissão na qual ingressou após passar em um concurso, em Belém. Assim, atuou no Centro de Perícias Científicas do Pará, o que fez com que mantivesse contato direto com episódios permeados pela violência. Isso, lembrando que o perito criminal é o profissional convocado a comparecer à cena do crime, para, após a devida identificação, dar andamento “à coleta, ao processamento e à correta interpretação dos vestígios dentro dos limites estabelecidos pela ciência”. A definição foi extraída do site da Associação Nacional dos Peritos Criminais Federais.

Seja como for, a experiência compreensivelmente reverberou no fazer artístico de Berna – embora, frise-se, esse seja anterior ao exercício da perícia criminal. Na verdade, foi como artista que ela procurou o Instituto Médico Legal de Belém, a fim de realizar pesquisas que ajudariam na elaboração de instalação artística. Lá, Berna Reale ficou sabendo da realização de um concurso para o cargo.

Calço

Todo este preâmbulo se faz necessário para o entendimento de como o caráter de denúncia e, tal qual, de reflexão, presentes no trabalho de Berna, não estão dissociados de uma práxis. Ou seja, ela, que inclusive trabalhou por dois anos em um presídio feminino, não está abordando temáticas inerentes ao universo da violência “apenas” (entre aspas, cumpre dizer) por, como qualquer cidadão minimamente engajado e consciente, entender a urgência de discutir esta questão. Berna opera tendo, como calço, a experiência. Ou seja, presenciou, de perto, sem filtros, os efeitos da violência.

Retorno à pintura

Sendo assim, na manhã da terça-feira, dia 9 de abril, Berna Reale recebeu a imprensa para a tradicional visita guiada às exposições que ocupam o equipamento pertencente ao Circuito Cultural e Turístico Liberdade. Na verdade, no percurso, os profissionais foram conduzidos não só pela própria artista, mas também pelo jornalista, crítico de arte e curador de “Ruídos”, Silas Martí, que contextualizou os trabalhos para os presentes. Na foto abaixo, Silas e Berna Reale.

Aos jornalistas, Silas situou que conhece o trabalho de Berna há muitos anos, já tendo escrito sobre ele por diversas oportunidades. “Em ‘Ruídos’, fizemos um recorte que passa por diversos pontos importantes da trajetória dela. Assim, temos as primeiras performances, mas também novidades, como um filme inédito, que a gente estreou em Brasília”. Ele destacou a plasticidade dos trabalhos – que, frisou, trazem um componente de sedução. “Porém, as camadas internas (das obras) não são exatamente sedutoras. São assuntos muito tensos, os que ela trata. Assim, esse atrito entre a superfície e o que está sendo dito é, entendo, o que faz de Berna uma grande artista”.

O curador

Ao tomar a palavra, Berna primeiramente enalteceu o estado que hoje recebe a mostra “Ruídos”. “Minha filha costuma dizer que tem até pena de quem não nasceu paraense. E eu sempre completo: ‘E quem nasceu mineiro?’ Porque deve ser tão bom ser mineiro”, disse, simpática. Assim, apontou considerar um privilégio estar no equipamento. “É uma honra. Na verdade, o espaço de arte também certifica o trabalho do artista. A gente não pode perder este referencial. Então, para mim, estar, no CCBB BH, uma instituição respeitada em nosso país, é um presente”.

Berna também falou sobre o curador, lembrando que já conhecia o trabalho de Silas há anos – inclusive, antes de ele trabalhar no jornal “Folha de S. Paulo”, o que, claro, ampliou o nome do jornalista. “Já acompanhava o que ele escrevia em algumas revistas de arte. E, para mim, o Silas é realmente um jovem fora da curva. Aliás, esta exposição ampliou esta certeza. Ele viu algo no meu trabalho que, na minha opinião, só poucos haviam visto, mas, de todo modo, (viu) de uma maneira diferente. Assim, costurou essa questão do ‘duro’, do ‘duelo’, do ‘difícil’ (elementos presentes no trabalho de Berna), com o modo como tento mostrá-los na superfície, ou seja, de uma forma agradável. Por meio de uma estética que permita com que as pessoas consigam olhar para as obras e refletir. Acho que ele foi brilhante nisso”.

Sobre chapa metálica

Na visita, Silas destacou que os quadros estão, na galeria, fixados em uma chapa metálica. “Ou seja, exatamente o mesmo material que ela usou como suporte para pintar essas figuras. Porque não se trata de pintura sobre tela (tradicional), mas, sim, sobre uma chapa de metal. E isso me chamou muito a atenção, justamente por se tratar de um material difícil – tal qual o conteúdo”.

Silas se refere ao fato de Berna Reale ter representado, por meio de suas tintas, vítimas reais, pessoas que sofreram algum tipo de violência. Casos que, cumpre frisar, ela foi recolhendo do noticiário. “Claro, não vou entrar em detalhes sobre o que aconteceu a cada uma das pessoas retratadas aqui, mas destaco o fato de as pinturas terem sido feitas em cima de um suporte muito ‘duro'”, ratificou Silas Martí.

Atrito/fricção/diálogo

Ao adentrar a primeira sala, logo à esquerda, o visitante se depara, pois, com quatro pinturas de Berna Reale. Trata-se da retomada de um suporte que há tempos ela havia deixado para trás. “Como essas obras aqui reunidas foram o pontapé inicial (deste retorno dela à pintura), entendemos que seriam representativas (portanto, pertinentes dentro do conjunto exibido). E (tal qual) que têm muito a ver com o escopo da mostra”, diz Silas

As quatro pinturas estão situadas em frente a fotografias nas quais o veludo se faz presente em alguma proporção. “O que nos leva a essa outra questão do trabalho dela, que é uma plasticidade barroca, que acaba gerando um contraste poderoso. No entanto, as obras (presentes na sala) abordam os mesmos temas. Na montagem, aliás, a gente quis deixar evidente como a Berna opera nessa fricção, nesse atrito, nesse diálogo – às vezes violento – entre essas duas noções, essas duas ideias”.

Representações

Entre as fotografias, chama a atenção a que transparece ser um vulto de um homem com capacete, e que parece estar em um movimento de “chupar” uma arma.

Silas explana que a obra ecoa o fetiche pela violência. Há, ainda, “Cabeças Raspadas”, na qual se vê duas mulheres de costas, tendo algemas que demarcam coques laterais.

E, ainda, um retrato, da série “Vã”, no qual Berna Reale parece estar em um ringue, mas com luvas de boxe de pelúcia e com cinto de castidade. “Lembrando que luvas de pelúcia certamente não são acessórios muito eficazes para combater ninguém. No entanto, em várias conversas que tivemos, ela sempre fala que as mulheres lutam com o que têm, então, nesse sentido, vejo como uma foto muito potente”.

Rosa Púrpura

Em outra sala, está a série “Rosa Púrpura”, com o recorte “Muçulmanas”, que, adverte Silas, também faz referência à questão da violência perpetrada contra a mulher, mas com um aspecto especial: a que acontece no ambiente privado. “Como sabemos, muitas mulheres são vítimas de violência doméstica e não denunciam, ficam em silêncio, se calam”. As mulheres das fotos trazem um acessório na boca. “Uma boca de boneca inflável”, especifica Berna. “Ou seja, um objeto (a boneca inflável) para ser violentado, para ser abusado”. E, não bastasse, o espectador se depara com a visão de uma mão masculina, tapando os olhos dessas mulheres. “A mão opressora”, observa Silas.

Uma das fotos da série "Rosa Púrpura" que podem ser vistas na exposição (Carol Cassese/Divulgação)
Uma das fotos da série “Rosa Púrpura” que podem ser vistas na exposição (Carol Cassese/Divulgação)

“Armas brancas”

Pouco à frente, há marmitas de alumínio, em cuja superfície externa há armas brancas incrustadas. Neste ponto, vale reproduzir um trecho do material explicativo da própria exposição. “É também nos bolos que familiares e mulheres de detentos tentam enviar, para dentro dos presídios, armas, drogas, celulares e outros objetos; de forma clandestina – e acabam também sendo detidas”. “’Arma branca’ diz bastante sobre a violência doméstica. Observe quanta simbologia existe em um bolo com facas gravadas”, completa Berna Reale, neste material.

O impronunciável

Passos adiante conduzem o visitante a duas grandes fotos que mostram um ambiente de compleição burguesa. Nas palavras de Silas Martí, “super saturado”, com um indefectível viés kitsch. “No entanto, a figura que ocupa o centro da foto, que posa, ali, para a gente; causa incômodo, pois não se encaixa em nenhuma definição de gênero, em nenhuma definição de etnia, de nada. Assim, é ameaçadora porque é estranha – e o estranho nos ameaça”.

Ao mesmo tempo, prossegue o curador, na cena, o citado corpo estranho divide a atenção com outro elemento singular: almofadas dispostas no chão que trazem figuras de gatinhos, com adornos que os deixam ainda mais fofos. “Assim, é mais um desses trabalhos que me chamam atenção por essa fricção que é muito poderosa. É sempre atrito, luxúria, excesso e violência”.

O universo da performance

Nas paredes da última sala, há fotos de algumas das performances realizadas por Berna Reale no curso de sua trajetória, algumas bem conhecidas. Caso de “Quando Todos Calam”, no qual ela aparece nua, sobre uma mesa, coberta com víscera de animais, nas proximidades do mercado do Ver o Peso. Em torno, há urubus sobrevoando. Da mesma forma, a exposição “Ruídos” também contempla vídeos curtos de algumas performances. Um deles extrai trechos de uma recente, “Escape”, na qual Berna caminha por um território aparentemente árido (os tons terrosos contrastam com o céu azul anil). A artista está com uma traje, touca e óculos de natação, bem como pés de pato, na cor rosa choque, néon. Com semblante grave, ela vai caminhando até a água.

No entanto, há uma corda azul vibrante que circula o peitoral da artista, abarcando também os braços, chegando à cintura. Ou seja, ao tomar a decisão de entrar na água, fica subentendido que não há como ela escapar do afogamento, posto que, por estar atada, não teria como nadar. Um outro vídeo – da performance ‘A Frio’ – traz Berna Reale enxugando gelo. São duas alegorias emblemáticas, que traduzem muito a incapacidade do ser humano de encontrar saída para situações que se repetem à exaustão no país (ou no mundo).

Carrinho de ossos

No caso de fotos extraídas das performances de Berna Reale, há, por exemplo, a de “Ordinário”, na qual ela conduz um carrinho de mão, desses usados em canteiros de obras (para o transporte de materiais como tijolos, pedras e sacos de cimento). Só que, ali, há ossos – crânios, inclusive. Essa performance, segundo Silas, aconteceu em um dos lugares mais violentos de Belém. “Então, na foto, temos essa figura – quase a de um coveiro, um agente funerário – que arrasta restos mortais. Como que expondo o produto final do que é viver em um país tão violento. Um país no qual o uso de armas se banalizou tanto, e não só pelos ditos ‘agentes do crime’, mas pela própria polícia”.

“Palomo”

Em outra foto, da performance “Palomo”, Berna surge como uma agente de repressão, sobre um cavalo vermelho (NR. De acordo com material divulgado na imprensa, a tinta usada é inofensiva ao organismo do animal, incapaz de causar danos). O animal foi emprestado pela Polícia Militar. Na performance, de acordo com material da Galeria Nara Roesler, que representa Berna Reale, ele remete ao Cavaleiro do Cavalo Vermelho, “um dos quatro Cavaleiros do Apocalipse, símbolo da guerra, descrito nesse
que é um dos mais conhecidos livros da Bíblia”.

Trechos filmados da performance "Palomo" são exibidos no CCBB BH (Carol Cassese/Divulgação)
Trechos filmados da performance “Palomo” são exibidos no CCBB BH (Carol Cassese/Divulgação)

Silas lembra que a concepção tanto da performance quanto do frame não visa identificar o agente como sendo de algum lugar específico, estado ou cidade. Assim, de modo genérico e alegórico, o que vemos é um agente que exerce a opressão. “Por outro lado, esse próprio agente também está amordaçado. E o modo de locomoção escolhido, esse cavalo vermelho, (simbolizando) o sangue que patrulha a cidade, fala muito da sensação de cerceamento de liberdade, de fiscalização constante”. Silas complementa que, muitas vezes, a pessoa vive em um lugar no qual, dependendo da forma como se expressa, pode sofrer retaliações, ameaças.

“Jardins Pensus da América”

E há, ainda, a foto de uma agente militar que rega uma plantação de rosas negras – “Os jardins pensus da América”. Também de acordo com material da Nara Roesler, a ideia, aqui, é remeter à tortura e à humilhação sofridas pelos prisioneiros da prisão na base norte-americana de Guantánamo, que incluiu guardas urinando sobre eles. “Dessa forma, o regador molha flores negras, que simbolizam tanto a
veste islâmica quanto os cadáveres sobre os quais os EUA urinam com seu exército e sua
indústria de armamentos, que é a indústria da morte”.

Foto de performance na qual Berna Reale rega flores negras (Carol Cassese/Divulgação)
Foto de performance na qual Berna Reale rega flores negras (Carol Cassese/Divulgação)

Serviço

Exposição “Ruídos”, de Berna Reale

Curador | Silas Martí
Classificação Indicativa: Livre (Atenção: Determinadas obras da exposição apresentam cenas de nudez e/ou violência como parte integrante da expressão artística e serão sinalizadas com totens na entrada das salas).
Onde. Centro Cultural Banco do Brasil Belo Horizonte – Galerias do Térreo (Praça da Liberdade, 450)
Funcionamento: De quarta a segunda, das 10h às 22h?
Quando. Temporada: De 10 de abril a 10 de junho
Quanto. Entrada gratuita, mediante retirada de ingresso no site da instituição e na bilheteria do CCBB BH.

Telefone: (31) 3431-9400

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