“Bambino a Roma” une memória e fabulação numa prosa leve e fluída com a cadência musical
Gabriel Pinheiro | Colunista de Literatura
Esse novo livro de Chico Buarque é uma pérola. Escrito com a cadência musical do escritor e compositor, o texto soa como música, leve, fluido, em diferentes compassos e um gingado marcante. “Bambino a Roma”, lançamento da Companhia das Letras, é ficção e é autobiográfico. Memória e fabulação. O quanto não inventamos ao dizer das nossas próprias memórias? Sobretudo aquelas com os sabores e as cores da infância?
Viagem à Itália
Entre 1953 e 1955, Chico Buarque partiu, ao lado da família, em um navio zarpado do Rio de Janeiro em direção à Itália – o pai, Sérgio Buarque de Hollanda fora convidado para dar aula de Estudos Brasileiros na Universidade de Roma. Numa viagem interminável, o pequeno Chico batizou todos os lugares possíveis da grande embarcação com seu, digamos, mal-estar. Quando, enfim, chegaram, a família Buarque encontrou uma Itália empobrecida pela recente guerra. Para Chico, o primeiro grande estranhamento foi se dar conta de que não tinha gente preta naquele país estrangeiro.
“Nada podia ser tão estranho quanto isso”.
O estrangeiro
“Bambino a Roma” é um olhar interessante para a questão do estrangeiro. Uma espécie de não-lugar. Um não-pertencimento. “(…) o certo era que no estrangeiro os estranhos éramos nós”. Se Chico Buarque conhece Roma pela primeira vez ainda na infância, ele retornará inúmeras vezes ao longo da vida. Numa dessas viagens para Roma, talvez tão ou mais marcante que a primeira, ele retorna, então, exilado. “(…) mas o verdadeiro mal-estar que então me perseguia devia remontar aos escuros tempos de ditadura em que me exilei por mais de um ano na cidade”.
Se digo que “Bambino a Roma” tem cadência musical na construção do texto, a breve narrativa também tem trilha sonora. São os sambas e as marchinhas de carnaval que, a cada ano, dominavam as paradas de sucesso no Brasil e eram cantadas pelo jovem Chico tanto de memória, quanto a partir dos discos que chegavam por meio de algum conhecido ou parente que partia para encontrar a família Buarque em solo italiano. A passagem do tempo no livro é marcada por essas canções, que abrem alguns de seus capítulos.
“Tu pensi que cachaça è acqua?/ Cachaça non è acqua, no/ Cachaça viene dell’alambicco/ E l’acqua viene del ruscello”.
O cangaçeiro
Chico nos conta sobre a estreia do filme brasileiro “O Cangaçeiro” no Cine Rex, na Itália, uma espécie de “cinema-conversível” cujo teto se abria nos intervalos entre os filmes. Ele descreve como, em noites de lua, era mágico ver a fumaça dos cigarros subindo ao céu. Lembra também da valsa que dançou, enlaçando a cintura da mãe de um colega de escola, e só depois descobriu que ela era Alida Valli, uma das maiores atrizes do cinema italiano.
“Na vida real, simplesmente dancei com a mulher mais linda do mundo, no que minha mãe não quis acreditar”; o encontro com o Papa Pio XII, figura que assombrou o escritor por muitos anos
“Quando ele ameaçou olhar na minha direção tive um calafrio, teria fugido se pudesse, e passei o resto do dia e da infância com pavor do papa”.
São muitas as lembranças e anedotas rememoradas e recontadas por Chico nesta breve joia literária.
Labirintos da memória
Um dos momentos mais mágicos narrados pelo escritor se dá na descoberta de uma edição italiana de “Raízes do Brasil”, obra escrita por seu pai, à venda numa livraria italiana.
“Sim, não era uma miragem, era quase como ler meu próprio nome acima do título de um livro que eu não conhecia em italiano: Alle Radici del Brasile. É o livro do meu pai!”.
“Bambino a Roma” é uma viagem pelos labirintos da memória, por uma cartografia tanto da capital italiana, quanto dos afetos que marcam aquele breve – mas tão marcante em sua formação – período na vida de Chico Buarque. Entre a lembrança e a invenção, Chico nos leva na garupa de sua bicicleta da infância, companheira de tantas aventuras, pelas ruas de Roma, num passeio deliciosamente inesquecível.
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Gabriel Pinheiro é jornalista e produtor cultural. Escreve sobre literatura aqui no Culturadoria e também em seu Instagram: @tgpgabriel (https://www.instagram.com/tgpgabriel)