Atração da noite de abertura da 18ª CineBH, o novo filme de Anna Muylaert recorre a aspectos alegóricos para falar sobre o patriarcado
Patrícia Cassese | Editora Assistente
Foi ainda em 2015 que os primeiros clarões do que viria a ser o filme “Clube das Mulheres de Negócios”, exibido na última terça-feira, 25 de setembro, como parte da noite de abertura da 18ª CineBH, em curso na capital mineira, acorreram à mente da cineasta Anna Muylaert. Naquele ano, vale lembrar, a paulistana lançava o mais que oportuno “Que Horas Ela Volta?”, que já colocava o dedo na ferida da divisão de classes sobre a qual a sociedade brasileira foi forjada. Com Regina Casé, Camila Márdila e Karine Teles no elenco, o longa apontava como mudanças em curso neste sustentáculo – por meio, por exemplo, da personagem Jéssica – provocavam sismos no que antes se pensava ser imutável.
“Era um momento de muita tensão de gênero. (Uma pauta que) estava inflando. As mulheres estavam falando muito sobre a questão de visibilidade, de estarem em certa situação e não receberem o crédito…”, contextualiza Anna, que conversou com a imprensa no Jardim do Parque Municipal – Espaço Claro de Conexões. Registre-se que, naquele período, o êxito de “Que Horas Ela Volta?” levou a diretora a festivais e eventos nos Estados Unidos e em países da Europa. “E, assim, nestas viagens percebi que tratava-se de uma questão mundial mesmo. Daí, pensei em fazer um filme de inversão de gênero, pensando que, por meio da diferença de corpo, talvez fosse possível perceber melhor certas atitudes (que, no correr do tempo, acabaram sendo normalizadas)”.
Zeitgeist
No entanto, logo em seguida, Anna conta que começaram a estrear filmes que tinham justamente como mote a inversão de gênero. Caso do francês “Eu Não Sou um Homem Fácil”, de Eléonore Pourriat, disponível na Netflix. “Aí, falei: ‘Bem, então, não vou mais exclusivamente por este caminho’. E veio o ano de 2016, o golpe… E o surgimento de uma ‘fase delirante’, vamos chamar assim. Então, fui levando o filme mais para esse lado, como eu disse, ‘delirante’, político. E, através das personagens de ‘O Clube das Mulheres de Negócios’, arquetípicas, a trazer (à tona) várias outras opressões que não só as de gênero. Ou seja, o (espectro do) filme foi se ampliando, para (abarcar) outras questões”, configura.
E assim nasceu “O Clube das Mulheres de Negócios”, filme que, antes do CineBH, só havia sido exibido no 52ª edição do Festival de Cinema de Gramado. Primeiramente, vale ressaltar o elenco estelar da empreitada, que reúne atores como Cristina Pereira, Irene Ravache, Louise Cardoso, Itala Nandi, Grace Gianoukas, Luís Miranda, Katiuscia Canoro, André Abujamra, Shirley Cruz, Priscila Marinho, Maria Bopp e Rafael Vitti, entre outros. A narrativa se inicia em um dia no qual as tais mulheres de negócios se reúnem para tratar… claro, de negócios, bem como para conceder uma entrevista.
Inversão de gênero
Não demora para o espectador se dar conta da citada inversão de gênero presente na tela. As mulheres ali representadas são tipos facilmente reconhecíveis no cotidiano de uma sociedade patriarcal, como o Brasil, na qual o chamado “sexo frágil” é doutrinado, de forma clara ou velada, a se submeter, enquanto os homens detêm/usufruem o poder, seja no mercado de trabalho, na vida privada ou na sociedade de modo geral. Só que, sem a tal inversão, na tela, elas teriam rostos e corpos masculinos.
No caso, o jovem repórter Candinho (Vitti) e o consagrado fotógrafo Jongo (Miranda) que adentram aquele espaço dominado por mulheres representam, aponta Anna, “as meninas”. “Eles puxam a trama, mas cada uma (das mulheres do Clube) tem a sua hora. Ou seja, fazem parte de um coletivo, mas cada uma tem o seu momento (para dizer a que veio na história)”.
Tupi or not Tupi
Não bastasse, o local é também um criadouro de onças, singularidade que desperta, em Jongo, uma extrema curiosidade, a ponto de convencer Candinho a levá-lo ao local onde as feras estariam supostamente aprisionadas. Ocorre que um dos recintos está com os portões destravados – e, lá dentro, nem sinal dos animais. Na entrevista coletiva, concedida por Anna Muylaert, a diretora destacou que a trama toca em figuras políticas brasileiras de forma crítica. “Mas tem o aspecto da onça que joga tudo isso mais para um abstrato, tropical, modernista, antropofágico, sei lá. Acho que o filme conversa com essas manifestações artísticas brasileiras, como a Tropicália, ‘O Rei da Vela’ (Oswald de Andrade) ou até a Semana de 22. Tupi or not Tupi…”, lança.
Elemento onírico
A presença da onça, localiza Anna aos jornalistas, veio a partir de um sonho, no qual uma onça em ataque se revelava. “Aí, entrei em uma nova fase de pesquisas, junto ao Gabriel Domingues”, conta. Foi um período inclusive de se debruçar sobre filmes de Steven Spielberg, como ‘Tubarão’ ou ‘Jurassic Park’. “Íamos vendo os filmes e redesenhando a estrutura através da presença da onça e dessas figuras emblemáticas que já estão em ‘O Rei da Vela’, de certa forma. Figuras brasileiras que estão aí há muito tempo, embora pareçam novas”.
Anna Muylaert lembra que, no caso do perfil da personagem interpretada por Katiuscia Canoro (Zarife), é fácil ligá-la um político que adquiriu relevância na história recente do país. “No entanto, ela (essa figura) já está lá, por exemplo, no Integralismo. Portanto, (representa) um tipo de delírio que sempre existiu no Brasil. Verdade que nunca tinha sido dominante, como recentemente, mas são forças que se fazem presentes em vários momentos da história”.
Old school
Um outro aspecto que Anna Muylaert coloca em foco é o fato de considerar “O Clube das Mulheres de Negócios” como um filme old school. “Primeiramente, porque entendo que ele é melhor visto em tela grande, em experiência compartilhada. Ele tem um tom aventuresco que, no cinema, é melhor. E também por ser o tipo de filme que gera um debate. Do qual todo mundo sai perguntando coisas, o que quer dizer determinada cena… Neste sentido que digo que é um filme retrô. Ele chama para o debate. E debate é algo que a gente faz em conjunto”.
Anna complementa. “Eu acho que nós, como sociedade, e isso em nível mundial, estamos vendo uma tendência a ter um indivíduo consumindo um determinado conteúdo na sua telinha e aquele que está sentado na cadeira do lado, consumindo outro conteúdo, bem como um outro ali, um terceiro conteúdo. E entendo que ‘O Clube das Mulheres de Negócio’ é um filme que, de certa forma, convida à convivência”.
Sobre Anna Muylaert (*)
Anna Muylaert nasceu em 1964 em São Paulo e formou-se em cinema na USP. Após bem-sucedida trajetória na TV, onde escreveu séries infantis como “No Mundo da Lua” e “Castelo Rá Tim Bum”, estreou na direção de longas-metragens com “Durval Discos” (2002). Em seguida fez “É Proibido Fumar” (2009). Ambos foram premiados em vários festivais e obtiveram ótima repercussão crítica. Anna também foi roteirista de “Desmundo” (2003) e “O Ano em que Meus País Saíram de Férias” (2006). Voltou à direção com “Que Horas Ela Volta?” (2015), que esteve nos festivais de Sundance e Berlim.
Outros filmes de destaque dirigidos por Anna Muylaert são “Chamada a Cobrar” (2012), “Mãe só Há Uma” (2016) e “Alvorada” (2022), este codirigido por Lô Politi. Além da exibição de “O Clube das Mulheres de Negócios”, a 18ª CineBH realiza uma Mostra Homenagem com títulos de Muylaert. Desse modo, serão exibidos, presencialmente, quatro de seus longas-metragens. Primeiramente, “Durval Discos”, que terá sessão a céu aberto, na Praça da Liberdade. Não poderia ficar de fora “Que Horas Ela Volta?”, bem como “Mãe Só Há Uma” e “Alvorada”. Eles serão mostrados em salas espalhadas pela cidade. Na versão online da mostra, estarão em exibição curtas e longas-metragens dirigidos por ela.
(*) Estes dois parágrafos foram extraídos do material de divulgação do CineBH.
Serviço
18a CINEBH – Mostra Internacional de Cinema de Belo Horizonte
15º Brasil Cinemundi
24 a 29 de setembro de 2024 | Programação gratuita
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