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Ana Martins Marques e Georges Perec: As muitas faces do exílio em dois lançamentos do Círculo de Poemas

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Livros da mineira Ana Martins Marques e do francês Georges Perec criam interessante diálogo entre movimentos migratórios passados e a atual crise de refugiados global

Por Gabriel Pinheiro | Colunista de Literatura

Dois lançamentos do Círculo de Poemas, criam um interessante diálogo entre passado e presente no que diz respeito à migração. São eles “Ellis Island”, do francês Georges Perec, e “De uma a outra ilha”, da mineira Ana Martins Marques.

Ana Martins Marques. Foto_ Rodrigo Valente
Ana Martins Marques. Foto_ Rodrigo Valente

De uma a outra ilha 

Em “De uma a outra ilha”, a poeta Ana Martins Marques parte da ilha de Lesbos, na Grécia, para entrelaçar diferentes temporalidades e acontecimentos. Lesbos outrora abrigou a poeta grega Safo. Hoje, é uma das principais portas de entrada para a Europa, um caminho desesperado perseguido por blocos e mais blocos de refugiados que cruzam mar e terra à procura de um porto-seguro, de, quem sabe, um recomeço. 

“Afastar a beleza

como se afasta uma mosca

abanando as mãos 

e ver

de fato ver

a montanha de coletes 

salva-vidas

ela mesma uma ilha

cercada de ilha

por todos os lados.”

Todo escrito em fragmentos, “De uma a outra ilha” entrelaça a obra e a história da poetisa grega com a dos refugiados contemporâneos. Fragmentos de Safo se misturam a fragmentos de materiais e reportagens jornalísticas sobre a crise humanitária.

“– onde estão/ após abandonar/ a terra onde nasceram/ ou após terem sido/ abandonados por ela/ tendo ela ido embora dizendo/ como a virgindade a safo/ nunca mais voltarei para ti, nunca mais”.

O poema como um arquipélago 

Como o arquipélago grego onde se encontra a ilha de Lesbos, Ana Martins Marques Cria aqui um arquipélago poético, a partir destes fragmentos. Um arquipélago habitado pela política, pelos afetos, pelo medo, pela vida e pela morte. Um arquipélago cercado pela água e pelos coletes salva-vidas alaranjados.

“Entrar e sair de um poema/ não é como entrar e sair de um país/ mas antes como entrar e sair do mar/ também os poemas tem fronteiras/ e nem sempre é fácil atravessá-las”.

“De uma a outra ilha” é mais um trabalho excepcional de Ana Martins Marques. Uma obra repleta de camadas que olha para o passado para refletir o presente e tentar imaginar um futuro. Como arqueólogos,  nos resta o cuidadoso – além de prazeroso e, te garanto, recompensador – trabalho de se aprofundar nas diferentes camadas de sentido que seus versos parecem guardar.

Georges Perec Foto_ Ulf Andersen
Georges Perec Foto: Ulf Andersen

Ellis Island

Ellis Island foi para muitos a última etapa antes da possível realização de um sonho. Para outros, foi o início de um pesadelo. Com o crescente aumento do número de emigrantes, sobretudo da Europa, em direção aos Estados Unidos na primeira metade do século XIX, a entrada de estrangeiros foi progressivamente restringida no solo americano nas décadas seguintes, culminando, em 1892, na inauguração do centro de acolhimento Ellis Island. Até o ano de 1924, período em que a instituição funcionou, mais de dezesseis milhões de pessoas passaram pela ilha. 

“Ainda tinham que passar por Ellis Island,

aquela ilha que,

em todas as língua da Europa,

teria sido chamada de ilha das lágrimas”

Fugindo da opressão política, racial e religiosa, da fome e da miséria, essas pessoas tinham o sonho suspenso por um breve ou longo período – ali, tão perto, mas tão longe – de um dos símbolos do sonho americano: a Estátua da Liberdade. “mas ainda não era a América:/ somente uma extensão do navio,/ onde nada estava garantido ainda”. 

A história, ou melhor, as histórias de Ellis Island e daqueles que por ali passaram são evocadas pelo escritor Georges Perec em um dos seus últimos trabalhos publicados, que carrega o nome da ilha, “Ellis Island”. A obra tem tradução em português por Vinicius Carneiro e Mathilde Moaty.

A História é cíclica 

“Ellis Island”, o livro, assombra pela atualidade. Publicado originalmente em 1980, após o lançamento do documentário “Récits d’Ellis Island, Histoires d’errance et d’espoir”, dirigido pelo próprio Perec ao lado de Robert Bober, a obra é um claro exemplo de como a nossa h

História, da humanidade, é cíclica. Um eterno retorno às mesmas questões, às mesmas urgências. Se entre o fim do século XIX e a primeira metade do século XX, a emigração de países europeus em direção aos Estados Unidos foi marcante, hoje observamos novos movimentos migratórios, numa das piores crises humanitárias da nossa história. Agora, é a Europa o sonho de milhões de pessoas, que se arriscam em perigosas viagens rumo aos países do continente e suas fronteiras cada vez mais cerradas. 

Espelhamentos entre o ontem e o hoje

Os motivos que levaram mais de dezesseis milhões de europeus em direção à Ellis Island no passado são comuns aos milhões de refugiados da África e do Oriente Médio atuais: a fuga da opressão política, racial e religiosa, da fome e da miséria. Como eu disse, um eterno retorno. “e podemos enfim perguntar o que este lugar significava para todos aqueles que ali passaram/ quantas esperanças, expectativas, riscos, entusiasmos e energias estavam reunidos ali”

De uma estrutura poética marcante, “Ellis Island” é uma daquelas obras que seguem ecoando após terminada a leitura. Ao olhar para o passado, Georges Perec não só analisa o presente da sua escrita, mas vai além: parece prever o futuro, aquele que vivemos agora. Se a errância é uma marca da humanidade ao longo dos séculos, ela segue acompanhada por outra que a alimenta e que, na maioria das vezes, parece a justificar: a esperança. 

Capa do livro “De uma Outra Ilha"
Capa do livro “De uma Outra Ilha”

Encontre “De uma a outra ilha” aqui

Capa do livro "Ellis Island"
Capa do livro “Ellis Island”

Encontre “Ellis Island” aqui

Gabriel Pinheiro é jornalista e produtor cultural. Escreve sobre literatura aqui no Culturadoria e também em seu Instagram: @tgpgabriel (https://www.instagram.com/tgpgabriel)

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